Visita Matinal

O garoto corria tanto quanto a bola. Naquela época, ele chegava junto com os amigos no campinho, pouco depois do meio-dia, ainda com o sol a pino, e o futebol continuava mesmo depois que a luz da tarde morria no horizonte, quando os postes da rua se acendiam e suas mães os mandavam entrar. Bom, agora, daqueles amigos, o homem perdera contato com mais da metade, sua mãe já falecera há 10 anos e os postes da rua não eram mais do que tubos cinzentos com as lâmpadas

quebradas, como cadáveres de pedra que por algum motivo permaneciam de pé.

O frio da manhã fez o homem apertar os braços de encontro ao corpo enquanto encarava o terreno baldio diante de si. Ele tinha saído mais cedo de casa e tinha que ficar de olho na hora para não se atrasar para o trabalho, mas, naquele dia, não conseguira sufocar a vontade de apenas passar por ali. A maioria das casas da rua ainda estava em silêncio - incluindo aquela onde ele passara os primeiros 20 anos de sua vida - e uma neblina matinal dava a tudo um ar cinzento, enquanto o homem se lembrava do garoto. Naquela época, ele e os amigos esperavam a manhã inteira pelo fim das aulas, a semana inteira pelo fim de semana, o ano inteiro pelas férias, para estar o máximo possível ali, naquele pequeno pedaço de terra que era o único espaço aberto da rua inteira e que nunca tinha sido grande coisa, mas que era o seu mundo, um espaço diferente de casa, da escola, de todos os outros em que os adultos ditavam as regras. Aquele era um território onde as normas eram conhecidas por todos e zeladas por cada um, um lugar que eles poderiam ter chamado de autônomo, se conhecessem a palavra.

Agora, servia como depósito de lixo para a vizinhança, o canto gramado em que o garoto e os amigos costumavam se sentar pra descansar depois de uma partida atulhado de restos de comida estragada vasculhados pelos animais. O homem olhava da calçada para 20 anos atrás e tentava imaginar o que tinha acontecido com o garoto. Ele sabia, é claro. Adolescência, trabalho, casamento e divórcio. Quando notou que pensava naquele menino como outra pessoa, soube que ele não existia mais. A vida chegou sorrateira, feito um estranho com voz macia pedindo informações, atraindo com doces que se era jovem demais, inocente demais pra recusar.

Aqueles foram bons tempos, com certeza. Entre os jogos de bola, os amigos, o tédio das aulas, a chegada do parque ao bairro a cada seis meses e a presença que parecia eterna dos pais, o garoto poderia acreditar que aquele contentamento tranquilo e constante era o estado natural das coisas. O homem não diria que era infeliz atualmente, apenas que a ideia de felicidade se adaptou à realidade. Tinha um emprego, tinha um filho que via quinzenalmente, tinha saúde e até mesmo saia às vezes, quando não estava muito cansado e algum conhecido o convidava para uma festa de aniversário de casamento ou coisa do tipo.

O garoto só notara que as coisas estavam começando a mudar durante aquela partida, depois do último dia de aula da 8ª série. Tinha sido o dezembro mais quente dos últimos anos, mas o garoto e os amigos não estavam dispostos a deixar passar em branco o fim do ginásio. Eles nem se deram ao trabalho de trocar os uniformes, não iriam mais usá-los, e a bola correu como não fazia há tempos, tão atulhados tinham estado com as provas finais. Não estavam todos ali; alguns estavam saindo com garotos de outras classes, ou já tinham começado uma rotina de estudos para tentar vaga numa escola técnica, ou estavam ocupados com as primeiras namoradas, ou simplesmente tinham perdido o interesse. Aqueles que estavam, porém, jogaram a tarde inteira. O garoto pensara que estavam jogando porque gostavam, porque podiam e porque foi o que sempre fizeram quando estavam juntos. O homem acha que jogaram porque depois de todo o Fundamental juntos estavam indo pra escolas diferentes, porque depois da massa maleável que suas mentes e vontades tinham sido até então, começavam a se solidificar em formas diferentes e sabiam disso, porque estavam crescendo e levaria anos para que aqueles moleques percebessem o quanto isso podia ser traiçoeiro.

Quando terminaram o jogo naquele dia já tinha escurecido e a única iluminação do campo eram as lâmpadas dos postes, que começavam a falhar. O garoto se despediu dos amigos naquela noite de modo trivial, do mesmo modo que sempre fizera, e, em algum momento depois daquilo, deu por si como um homem contando os anos que tinham passado. Não se lembrava de outros jogos depois daquele, mal se deu conta de quando deixou de se preocupar com os estudos pra se preocupar com o trabalho – deve ter sido mais ou menos na mesma época em que começaram a jogar lixo no campinho – e às vezes perguntava a algum conhecido da época se ele sabia como estava um ou

outro daqueles garotos. Parece que quase todos tinham se mudado ou perdido o contato.

O terreno, porém, continuava ali. Mesmo não morando mais naquela vizinhança, o homem tinha ido até lá no dia em que descobrira que fora reprovado no vestibular, na manhã em que fora demitido do primeiro emprego e alguns dias depois do divórcio. Só pra dar uma passada. Essas vontades de visitar aquele lugar pareciam estar aumentando com o passar dos anos e o homem achava que devia parar com aquilo antes que se tornasse um hábito. Não tinha tempo pra desperdiçar com essas

visitas, tinha um trabalho para ir, prestações e uma pensão a pagar, se queria jogar bola devia entrar no clube da empresa e ver se tinha vaga para si no time do setor de contas.

O homem pôs as mãos nos bolsos para protegê-las do frio e começou a andar, deixando para trás o terreno baldio e tomando o caminho do ponto de ônibus. Não costumava pensar no que teria que fazer no serviço, mas sabia que teria bastante trabalho ao decorrer do dia e logo aquela visita seria esquecida. Naquele fim de semana veria o filho, talvez devesse ensiná-lo a jogar bola, se já não soubesse. Por um momento imaginou que deveria falar com ele sobre o garoto, sobre o campinho,

sobre aquela tarde de dezembro e sobre acordar assustado como se tivesse ficado dormindo por anos. Achou melhor não. O filho na certa não entenderia, porque também era um garoto e se lhe dissesse algo poderia apenas acelerar o efeito que queria evitar. Não importa a conversa que tivessem, era inevitável, a tarde de dezembro chegaria mais cedo ou mais tarde para ele, então era melhor que ao menos por enquanto ficasse sem saber a quantidade de lixo que as pessoas podem

deixar acumular em um campinho abandonado.