Conto das terças-feiras – Eu disse que não ia dar tempo
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 9 de fevereiro de 2021
Tarde de sábado, tempo de férias escolares, a cidade fervilhava de turistas, os citadinos procuravam um divertimento que fosse diferente de sol e mar. Restava-lhes a luxuosa sala de cinema do São Luiz. A família se programara para assistir ao filme em cartaz Aventuras de Bernardo e Bianca, da Walt Disney Productions, que versava sobre uma organização presidida por ratos, localizada no subsolo da ONU, na cidade de Nova York, que se dedica a ajudar vítimas de sequestro em todo o mundo. Dois ratos, o zelador Bernardo e sua coagente Bianca, saem em busca de Penny, uma menina órfã mantida em cativeiro pela caçadora de tesouros Madame Medusa. Um tema sério, mas tratado com bom humor.
Em casa a euforia era grande, nunca os três filhos, uma com oito, outra com sete e o caçula, com cinco de idade, da família Ramalho, tinham ido a um cinema. Roupas e sapatos novos, para as meninas laços de fita na cabeça, o garotinho de calça comprida e suspensório. Os pais elegantemente vestidos, era assim que os frequentadores do Cine São Luiz se portavam na década de 1980.
Fazia muito calor naquela tarde, a fila para comprar os ingressos chegava ao fim do quarteirão, muita gurizada, gargalhadas, corre-corres, pais preocupados, mas parecia que todos estavam felizes. Alguns daqueles que estavam ali nunca tinham entrado em uma sala de cinema tão sofisticada, tão requintada. Considerada uma das mais luxuosas salas de projeção, com seu hall de entrada em mármore, três lustres de cristal checos, escadarias, carpetes e pinturas imponentes, encantava a todos.
Depois de esperar cerca de 45 minutos e o final da sessão anterior, iniciada às 14 horas, pouco a pouco as pessoas foram entrando, as crianças da família Ramalho já tinham consumido dois sacos de pipoca, cada, refrigerante e outras guloseimas, finalmente iriam participar daquela grandiosa festa. Com cadeiras numeradas, couberam-lhes as localizadas no piso superior – galeria.
As luzes apagaram, a projeção teve início, primeiro os trailers dos próximos lançamentos e, finalmente o filme começou, fez-se um silêncio sepulcral, de repente alguns gritinhos soaram, choros e até assovios. Tudo fazia parte daquela tarde de sábado, muitos eram crianças. Os sacos de pipoca começaram a ser abertos “crec” “crec” e alguns assobios reclamando dos sons, como se tivesse alguém que sofresse de misofonia. Na tela os ratinhos protagonistas entravam em ação, cenas cômicas que despertavam gargalhadas da plateia. Outras tristes, quando se ouvia, “Oh! Que pena”.
Foi assim quase todo o filme, algumas crianças levantando-se e o pai obrigando a sentar-se, aplicando-lhe um safanão. De repente o pai da família Ramalho percebe o filho vindo em sua direção:
— Sente-se filho, preste atenção ao filme!
O menino sentou-se para logo em seguida falar alto:
— Pai, vamos para casa!
— Só quando o filme terminar, falta pouco.
— Eu quero ir agora, ponderou a criança.
Ele ficou de pé a corrupiar próximo à sua cadeira. O pai, já zangado, prometeu-lhe algumas palmadas quando chegasse em casa. O garoto tentou sentar-se, mas não conseguiu. Comprimindo a barriguinha, falou quase sussurrando:
— Pai eu quero fazer cocô!
O pai, que não ouvira direito o que ele dissera, não se importou. Novamente, agora com mais ênfase e estufando o peito o garoto gritou:
— Pai, eu quero fazer cocô!
Metade da plateia ouviu. Alguns gritaram em uma só voz, como se tivessem ensaiado:
— Leva o garoto, já! Senão isso aqui vai ficar insuportável.
Seu Ramalho, desesperado, pegou a mão da criança e saíram escada abaixo, procurando o banheiro do térreo, não havia banheiro nas galerias. O menino, aperreado, dizia:
— Não vai dar tempo, não vai dar tempo, pai.
Já no piso apropriado, na porta de um dos banheiros o menino desabafou:
— Eu não disse que não ia dar tempo – pouf! um aroma mal cheiroso expandiu-se por todo o ambiente, e as calças toda breada.
O pai, pacientemente tirou a calça comprida do filho, deu um banho nele e lavou-a com o sabonete para mãos, e deu um banho no vitimado. Depois espremeu a calça com bastante força, até não sair mais água, vestiu-a na criança.
Na saída encontrou uma auxiliar de limpeza, passou-lhes às mãos uma certa quantia em dinheiro e pediu-lhe que fizesse o favor de limpar a sujeira em frente à porta do primeiro banheiro. Ela sorriu, agradeceu e saiu satisfeita. Ganhara o valor equivalente a uma semana de trabalho, mesmo não executando uma atividade das mais limpas.