A Nossa Rua

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Fui moleque de rua! Passei grande parte da infância nela, com a minha turminha "da rua". Éramos cinco, seis moleques entre 9 a 12 anos. Eu, o mais velho e o chefe da "gangue". Era o mais alto também - estava tendo o "estirão" de crescimento e semana a semana, me alongava. Tinha as pernas e braços longos. Os demais meninos eram menores. Naturalmente, pelo meu tamanho, chefiava o grupo.

Nossa rua, ou, "A nossa rua" (não morava nela, mas em uma perpendicular ) era curta, entre duas esquinas, e onde fazíamos nossos "rachas" de bola, jogos de "taco", corridas de carrinho de rolimã, andávamos de bicicleta, enfim, as coisas de moleque daquela época. Passava o dia de "shorts", "conga com biqueira", camiseta, joelhos e cotovelos ralados - tenho as marcas até hoje. Uma delícia! Poucos carros passavam por ela, a cidade e os bairros eram calmos, não como hoje, em que eles dominam. Nada que nos prendesse em casa, pelo contrário, queríamos ir pra rua - ficar em casa era chato e só de castigo é que isso ocorria. Bons tempos!

Hoje, vejo os meninos da mesma idade, da que eu tinha na época, presos a telas: de TV, celular, vídeo game, "tablets" etc., vivendo um mundo irreal, fantasioso, onde a vida é virtual. Eles não podem ter a sua rua. Uma pena! Mas é a realidade, época e temos de aceitá-la, conviver com ela. Penso como será com meus netos, pois, nada sei sobre games, por exemplo. Já tenho um neto agregado, ou melhor, enteado de meu filho mais velho - filho de minha nora do seu primeiro casamento, e o garoto, de sete anos, o "netelho" (o apelidei assim e ele a mim de "votelho"), joga muito bem vídeo game. Tentei jogar com ele uma vez: levei uma lavada.

Voltando à minha época ou para aquela época há cinquenta anos, um dia, estávamos chutando bola na rua usando como gol um poste com uma placa de trânsito e um tijolo sobre a calçada, tendo como fundo, um enorme muro, altíssimo, de fundos de uma casa, ou melhor, mansão, que rebatia de volta a bola chutada e, junto ao gol, estacionado na rua, estava o carro de uma senhora que morava na casa em frente a nossa "meta". Era a "velha" - devia ser estrangeira, alemã talvez, pois falava tudo errado, trocava as letras, palavras, e quando a nossa bola caía dentro da sua casa, ela furava e a devolvia: furada! Não gostava de nós, nem nós dela, decididamente! Quem nos ajudava e devolvia a bola, quando estava em casa, era sua filha, bem mais velha que nós, loira, olhos azuis, bonita, e toda a molecada, eu inclusive, éramos apaixonados por ela. Coisas de moleque de rua.

Seu carro atrapalhava nosso bate bola naquele dia, ela batia nele frequentemente, entrava debaixo, enfim estava impedindo nossa brincadeira. Veio, então, uma chuva pesada de verão, daquelas de lavar tudo e todos. E para nós que adorávamos jogar bola debaixo d'água, a farra aumentava: caía-se, ou escorregava-se de propósito no chão, na enxurrada, uma festa! A bola, de "capotão" ( couro e pano ) se encharcava de água e bem pesada ficava. A cada chute parecia que uma pedrada fora dada no nosso pé. O goleiro sofria!

Então, estava eu bem de frente ao gol, veio alta a bola pesada para mim, a "matei no peito" e sem deixá-la cair no chão dei um chutão! Coisa de "Pelé"! Saiu com a trajetória direta em direção ao para-brisa do carro da "velha"! A molecada parou, todos, eu junto, acompanhado seu curso fazendo aquele "spray" de água, espirrando pelo seu girar e "pam": um barulho surdo e grave de vidro quebrado foi ouvido, ecoando pela rua! Fugimos cada um para as suas casas, assustados. Parecíamos um bando de formigas correndo para todos os lados!

- Que que aconteceu com você? Parece que viu um fantasma! Que cara é essa? - diz minha mãe quando entro pela cozinha - estava totalmente molhado e tinha que passar por lá, me secar, para não sujar a casa.

- Nada não mãe, subi correndo a rua por causa da chuva, só isso -indo tomar banho e me preparar para ir para a escola - estudava de tarde e todos os dias vinha o ônibus da escola me pegar - um "Studebaker" dos anos 50, dirigido por seu Urbano, daqueles de se abrir a porta com manivela e vara - não era hidráulico. Passava em torno da uma hora da tarde na rua de casa.

Tomo banho, ponho a roupa e desço para almoçar com a minha mãe somente - minha irmã estudava de manhã e vinha mais tarde, meu pai, só à noite, no jantar. A mesa era redonda e meu lugar ficava bem perto do telefone - naquela época só existia fixo. Então ele toca:

-Atende, por favor. - me pede minha mãe.

- Alô?

- É a menino qui quebrro a vidrra do minha carro? - Era a "velha"! Fiquei estático, em estado de choque, boca aberta, olhos esbugalhados e quieto! Minha mãe, de olhos arregalados:

- Que foi, o que aconteceu, está branco como leite! Deixe eu ver. Pega o fone e começa a conversar com a "velha", sua cara vai ficando amarrada, olhos semicerrados, escutando a fala enrolada da senhora.

- ...a senhora sabe, é menino ainda, não fez por querer, acontece.... vou falar com meu marido hoje no jantar e ver como se resolve esse assunto. Desliga, me olha, eu para ela:

-É, eu quebrei o vidro do carro dela mãe, mas não foi de propósito! Ela deixa o carro bem no nosso gol, atrapalha, choveu e a bola ficou pesada, eu chutei e foi direto no vidro! Ela podia não deixar mais o carro lá, né!

- Disse que é a maior gritaria, que vocês xingam palavrões, a bola vive caindo na casa dela, ela fura! Disse que " eu fica loca, eu tá ficando loca com sua filho - termina a frase já mais branda, esboçando um leve sorriso. A senhora que morava em casa naquela época e cozinhava, escutava nossa conversa, me olhou, piscou e deu uma risadinha do "eu fica loca".

-Hoje à noite, no jantar, vou falar com seu pai para ver o conserto do vidro dela!

Escuto a buzina do ônibus seu Urbano e vou para escola. Volto no fim do dia, o jantar posto com meu pai e minha irmã presentes, o assunto, corre na mesa:

-Quebrou o para brisas da senhora com uma bolada então?

Minha mãe contara toda a conversa com a "velha" e no final, disse ..."eu fica loca com sua filho..." Meu pai riu comedido, minha irmã gargalhou e minha mãe não querendo rir, não aguentou e sorriu também. Fiquei aliviado, pois o ambiente estava descontraído, teria algum castigo, mas seria mais brando.

-Vamos ter que pagar a troca do vidro dela; você vai ficar quinze dias de castigo dentro de casa e vai engraxar todos os meus sapatos, certo!

O difícil não seria engraxar todos os sapatos dele, mas ficar em casa quinze dias, isso era a morte, e esperar todo esse tempo para contar para a tropa do "eu fica loca", mais ainda!

Passaram-se os quinze dias e voltei para "A nossa rua". Contei toda a história, retomamos nossos "rachas", a "velha" não parava mais seu carro ali junto do nosso gol: voltou tudo ao normal, na "A nossa rua"!

Ou melhor, quase tudo, a menos que, às vezes, gritávamos durante os jogos, bem alto, junto do muro da casa dela, da "velha": "eu fica loca, eu fica locaaa..."

Coisas de moleque de rua. Bons tempos!

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 08/02/2021
Código do texto: T7179571
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