O TESTAMENTO

- Alberto Vasconcelos

O Sr. Theóphilo Mathias de Alvarenga, armador aposentado, conseguiu amealhar, em sua longa existência, incalculável fortuna a partir do nebuloso contrato de casamento com a filha deficiente mental do armador grego Lyko Lykaius, o qual, como sugere o nome, era esperto como líder de matilha. Raríssimas pessoas visitavam a sua mansão e por não ter filhos, seus herdeiros eram os sobrinhos, Veríssimo, Gentil e Inocêncio que desde crianças, nunca foram bem-vindos em sua casa e já não se comunicava com eles há dez anos, talvez. Depois do acidente que o deixara dependente da cadeira de rodas a maior parte do tempo, só Constâncio, o mordomo, tinha permissão para entrar na biblioteca, seu refúgio favorito, cujas paredes forradas por estantes repletas de livros, diziam ser esconderijo de objetos preciosos, barras de ouro, joias, pinturas e documentos raros avaliados em muitos milhões de dólares. Numa tarde chuvosa de abril, hora do chá, Theóphilo falou novamente ao mordomo que o seu falecimento deveria ser comunicado apenas ao tabelião para providenciar a cremação do corpo e a destinação dos seus bens conforme descrito no testamento depositado há anos no cartório. Contrariando as ordens recebidas, na semana seguinte, quando encontrou o Sr. Theóphilo morto no chão da biblioteca, Constâncio informou o falecimento do patrão aos sobrinhos que, por puro interesse financeiro, chegaram bem a tempo de, junto com o tabelião e o mordomo, participarem da cerimônia de cremação do tio querido, com as falsas máscaras de pesar, vozes embargadas e olhos vermelhos pelo choro contido. Eles ficariam hospedados na mansão até a abertura do testamento dali a quinze dias, conforme determinação do falecido.

- Aristeu Fatal

Caso muito complicado esse. Há que se fazer um breve comentário, de tudo o que aconteceu quando Theóphilo recebeu de Lyko, seu concorrente, nem por isso inimigo, as mãos da filha excepcional, junto com um polpudo dote, devidamente documentado. Coisas impossíveis de serem explicadas. Como se estivéssemos em Chicago, na época dos mafiosos, Theóphilo deu o fim no sogro e na mulher. Nunca mais foram vistos. Pedra sobre pedra. Não tendo mais qualquer herdeiro próximo, ele testamentou três sobrinhos como tal, filhos de uma irmã solteira, já falecida, com um caixeiro viajante, que após o nascimento deles sumiu, ninguém sabe e nem viu, jamais apareceu. Os três, Inocêncio, o mais velho deles, que de inocente não tinha não tinha nada, só nome, era daqueles que usava sempre gravata borboleta, viciado em charuto, lencinho na lapela, um finório. O segundo, Glauco, um deus grego dos mares, nome cujo significado é esverdeado, por ter seus olhos dessa cor, de modos delicados, falante, perfume francês, era uma espécie de tempero, no modo de conduta dos outros dois irmãos. Finalmente, Veríssimo, outro nome mal dado, falso como whisky paraguaio, jogador profissional, viciado em cassinos. Como se vê, a fortuna foi parar nas mãos de uma verdadeira matilha, acrescentando-se Lucas, o mordomo, que em conluio com os irmãos, esperava ter sua “parte nesse latifúndio”. Mas, o testamento iria ainda ser aberto. Sempre poderia haver alguma surpresa. “Qui lo sà” diz o italiano. O ambiente entre o trio e o mordomo era festivo, somente regado aos melhores vinhos, whisky, champanhes e algumas coisinhas a mais, muito em moda na alta sociedade, da qual os figurantes faziam parte.

- Cléa Magnani

Lucas servia fielmente ao multimilionário Theóphilo desde os vinte e cinco anos de idade. Mas nos trinta anos em que o serviu, sua fidelidade não conseguia ultrapassar as portas da imponente biblioteca, sem que dois cifrões não se refletissem em suas pupilas escuras. Então temeroso em ficar de fora da tremenda fortuna, já que não era parente, ao conhecer os três irmãos, aproximou-se um pouco mais, de Glauco, o belo rapaz de olhos verdes, que também achava seus cabelos ligeiramente grisalhos nas cãs, um charme. Assim, visando unir o útil ao agradável, sua afinidade com o jovem crescia a olhos vistos, e o que para todos era uma simples amizade, já havia sido selado entre eles num casamento sigiloso no cartório semanas atrás, garantindo assim a sua parte na fortuna. A ansiedade de Lucas em abrir o Testamento era tamanha, que não contou aos três possíveis futuros milionários, que havia o período de quinze dias pedido por Theóphilo, a ser respeitado. Decidiram sem delongas chamar o Juiz para saberem qual seria a parte de cada um. Quando o Magistrado que compareceu à mansão abriu o testamento, franziu o cenho, arrumou os óculos folheou o grosso documento e dando um profundo suspiro, iniciou a enfadonha leitura, de todos os bens, colecionados por Theóphilo em seus 89 anos de idade. Propriedades, joias, letras de câmbio, ações, Dólares, Euros veículos, navios mercantes, cavalos de corrida puro sangue, propriedades no exterior, uma ilha no Pacífico, hotéis de turismo nas Bahamas, iates, etc. etc. etc.... Duas horas e meia depois, o Juiz terminou a relação de toda a fortuna deixada pelo velho tio. Chegou a hora de saber o que caberia a cada um dos três afortunados sobrinhos.

- Silvia Grant

O que esperar de uma pessoa tão sem escrúpulos quanto Theóphilo? Deu cabo ao sogro e a esposa assim que pode, não tinha amigos e nem laços familiares aos quais prezasse. Aparentemente, também não tinha religião ou crenças. Em vida só demonstrara apego às coisas materiais. Muitas vezes, a vida solitária nos leva a refletir e pode nos ensinar muitas coisas e, se formos providos de caráter, a reflexão nos convida a uma reforma íntima, a discernir os verdadeiros valores morais e espirituais! Nos últimos anos, dispondo de uma vasta biblioteca e quase sempre trancado nela, Theóphilo começou a interessar-se pela doutrina espírita. Com a saúde se esgotando e a morte se avizinhando, resolveu cuidar da alma, na tentativa infeliz de conseguir um pouco de livramento para seu espírito, entretanto, Theóphilo continuava a ser o egoísta, o egocêntrico de sempre! Queria ser cremado pois lera que o desligamento espiritual em relação ao corpo biológico se dá entre 24 e 72 horas. Mais uma vez, sua única preocupação era consigo mesmo! Apesar das leituras edificantes e claras sobre as modificações a serem adotadas, sua conduta não mudara absolutamente em nada.... Theóphilo continuava agindo como sempre, tudo que o importava era o seu próprio prazer e bem-estar! Negava-se terminantemente a ter um relacionamento mais amável com seu serviçal de tantos anos. Insistia em manter-se distante e desconectado de seus sobrinhos.... Durante uma vida inteira, não fizera amigos, não ajudara ninguém.... Mantivera-se implacável e irredutível.

- Alberto Vasconcelos

Diz a sabedoria popular que “o pau que nasce torto, até a cinza é torta”, portanto as orientações da doutrina espírita em nada alteraram o caráter do sr. Theóphilo e para ter total conhecimento das atividades dos seus sobrinhos e do mordomo, recebia, on-line, relatório do escritório de detetives contratados para segui-los. Era a precaução de quem teve uma vida que jamais poderia ser usada como exemplo de retidão. Nenhum dos cinco eram confiáveis. Talvez os sobrinhos por influência genética e Lucas, o mordomo, pela longa convivência. Seu desejo era deixá-los, na desilusão de ver a fortuna cobiçada sendo destinada a outros, mas a lei não lhe dava o direito de deserdar os parentes. Até que poderia deixar o mordomo de fora da partilha, mas a sua inclusão tornaria menor a parte de cada um deles. Folheando um jornal antigo ele encontrou a solução. Todos os seus bens, no Brasil e no exterior seriam vendidos por leiloeiro oficial e o valor arrecadado, mais os saldos de suas contas correntes e aplicações, transformados em ações do Banco do Brasil S/A cujos rendimentos deviam ser pagos aos herdeiros, mas apenas como usufruto. Caberia a cada um 25% do montante enquanto vivos. Por ocasião da morte de qualquer dos herdeiros, a titularidade de 1/4, depois 1/3, depois 1/2 das ações será transferida para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) que, ao final, terá a posse de todo o conjunto das ações. Finda a leitura, o juiz avisou que o saldo bancário do falecido estaria indisponível pois seria utilizado para pagar os custos com as tramitações e que os herdeiros não esperassem receber nenhum valor antes de um ou dois anos. Decepcionados, os quatro entenderam o porquê daquele semblante risonho do falecido, visível através do vidro da janelinha no suntuoso ataúde.