Conto das terças-feiras – Era apenas veneração
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 2 de fevereiro de 2021
O tempo demorava a passar naquela lonjura de cidade. Calor abrasador, casas distantes umas da outras, escola mais longe ainda, poucas crianças estudam lá. Só aquelas que têm disposição para andar e vontade de aprender, princípio incutido por pais analfabetos e de visão não tão obscura, entre nessa pequena massa de crianças que não tiveram condições de estudar. Viveram e vivem para trabalhar na roça. Foram despertados pela chegada da televisão, ainda funcionando ligada à bateria de carro. Imagem péssima, mas já instruía, dava para perceber que havia outro mundo no fim da estrada. Os pais notaram a inquietação de seus filhos e os incentivaram a estudar, só assim alcançariam sucesso na vida!
Laura e André passaram a maior parte de suas vidas, indo a pé para a escola. Acordavam muito cedo, ainda escuro, enfrentavam oito quilômetros de estrada, percorridos com satisfação, já sabiam o que queriam da vida, não aquela dos seus pais, mas as divulgadas pelas imagens da TV. André morava uns dois quilômetros da casa de Laura, era ele que encorajava a garota a ir para a escola. Saia um pouco mais cedo de casa para apressá-la a se arrumar e não chegarem atrasados que, como castigo, não lhes seria permitido assistir o primeiro tempo de aula.
Foi desse modo que chegaram à adolescência e ao fim do curso ginasial. A partir dessa etapa teriam que ir para uma cidade maior, separar-se das famílias. Os pais de André já vinham costurando essa ocasião. Os pais de Laura não viam com bons olhos a partida da garota. Em suas conversas argumentavam:
— Ela é uma criança, tem apenas dezessete anos, nunca saiu de casa, - dizia o pai.
— Para que então colocar ela na escola? - argumentava a mãe.
— O seu Jorge, pai do André tem família na cidade onde o menino vai morar, você deveria perguntar se Laura poderia ir com o amigo.
— Não sei se isso vai dar certo, - falou o pai de Laura. Vou tentar, concluiu ele.
Duas semanas depois os dois adolescentes se mudaram para a cidade grande. Houve chororô, parte pela saudade que iriam deixar, outra pela alegria de perseguirem um sonho.
A adaptação na cidade grande trouxe alguns problemas, mas nada que tirasse o entusiasmo dos dois. O propósito era estudar, estudar e conseguir uma vaga na Faculdade de Medicina, o sonho de ambos, um sonho que para André significaria a união definitiva da dupla. Vencidos os três anos com galhardia, chegaram à faculdade com destaque. Ambos eram elogiados pelos seus responsáveis, os tios de André. Nesse ínterim, os pais de André e Laura deixaram este mundo, as mães, muito amigas, foram morar juntas e passaram a receber o auxílio governamental, vivendo tranquilas na casinha que adquiriram com a venda dos dois sítios. A pequena cidade crescera um pouco, mas só isso!
Na semana da festa de formatura dos dois, que até àquela data haviam se comportado como bons amigos, despertou em André a paixão recolhida que sempre nutrira por Laura. Ao se declarar à garota, a reação dela não foi das melhores, repudiou por completo aquela atitude do amigo:
— Você não está falando sério, não é mesmo André? Fomos e sempre seremos apenas bons amigos – completou Laura.
— Eu achava que você gostava de mim.
— Gosto sim, mas como um bom amigo, um irmão que eu nunca tive. Nunca pensei em uma relação entre nós dois, - falou ela de modo incisivo, pretendendo cortar logo aquele papo.
Cabisbaixo o amigo de infância e adolescência saiu do quarto da amiga. Dirigiu-se para a rua, atordoado e sem destino. Ele sempre temera aquele momento, tímido, nunca tivera coragem de manifestar o amor que sentia pela companheira de jornada. Agora, mais confiante e orgulhoso pela conquista do grau de médico, achou que estaria na hora de ter sua amada em seus braços, tinha certeza de que ela não recusaria. Debalde foi a sua atitude, jogara tudo fora, até a amizade que mais prezava.
André sumiu, nunca mais foi visto. Há notícias, não confirmadas, que ele se engajara em uma equipe de uma organização sem fins lucrativos que oferece ajuda médica e humanitária a populações em situações de risco, em casos de catástrofes, epidemias, fome e exclusão social.
Laura não se importou, argumentando que ele realmente não a amava, apenas a tinha como objeto de veneração. Casamento entre eles nunca daria certo.