Riacho Verde

E se eu tivesse nascido rio?

Ah, eu queria ter nascido Riacho Verde, em Teixeira, Paraíba.

Percorrer as terras enfeitadas de poesias e de saudades. Não importava navegar por leitos duros, forrados de lajedos, desde que eu sentisse as carícias da brisa à luz insinuante da lua. Eu contemplaria, já com saudades, as luzes mortiças das casas à margem. Quem sabe, eu ouviria acordes de violões sob o brilho das estrelas e, também, gemidos de amor na noite escura, quando o amor se faz mais íntimo. Sob os pés de cajás, de cajus, perenes observadores do meu passar, namorados se acomodariam, e tocados pelo cenário que eu lhes ofertava, se encheriam de ternura, se acariciariam, numa intimidade ousada e sem censuras.

Uma verdadeira sinfonia fazia-me companhia: cantos de moçoilas apaixonadas e sofredoras, benditos religiosos em agradecimento por aquela água passante, cantorias de repentistas improvisando o momento de alegria, homens e mulheres desafinados expressando o seu sentir, gritos de meninos que se enfiavam em meu interior.

Todos me aguardariam com expectativa, e me receberiam com prazer. Eu serviria de alimento para toda a vida ciliar. Ninguém me perguntaria de onde eu vinha ou qual o meu destino. Parece que já sabiam.

Eu desfilaria garboso entre as serras e penhascos, umedecendo a terra que se tornaria fértil, produzindo sustento para as populações ribeirinhas. Regaria as árvores e vegetações as quais logo, logo, se apresentariam verdes, embelezando a passarela que me serviria de leito. Por isso eu leria gratidão nas flores de cores exuberantes, tais quais as das canafístulas, dos paus-d’arco roxos e amarelos, nas flores simples das jitiranas rastejantes, dos chumbinhos, das “marias preta”, que enfeitavam as minhas margens. De manhã, quando os raios do sol se refletissem no espelho de minhas águas, cores, luz e flores se misturariam, fazendo-me a natureza, uma de suas mais lindas telas.

No inverno aumentaria o volume de minhas águas e as duas margens dar-se-iam as mãos, numa aproximação natural e efêmera, em que eu me sentiria feliz por ser o vínculo entre aqueles dois acidentes paralelos. Aqui e acolá, riachos menores viriam unir-se a mim, numa união hídrica indissolúvel e, juntos, perambularíamos, fazendo zig-zags, driblando a conformação geográfica. Garotos apostariam corridas comigo num sobe e desce constante, porém, eu não via como competição, eu entenderia aquela atitude como um adeus elástico, que eu queria sem fim. Era uma grande festa, todos me conheceriam e me chamariam pelo nome: Riacho Verde.

Quem sabe, jovens faceiras se banhariam em minhas águas, e eu seria uma testemunha itinerante de suas confidências. E também de suas frustrações. Quantas lágrimas se misturariam às minhas águas? Lágrimas de satisfação e de amor, lágrimas de sofrimento e de saudades, e eu recolheria aquelas expressões de alegria e de dor, para conduzi-las comigo até o meu destino, comprometendo-me a não revelar a ninguém.

Porém, se as minhas águas, em todo o seu trajeto, ficavam tão disponíveis, por que procuravam me deter ou me conter com açudes e barragens? Por que quebrar a minha unidade se eu sempre fui um meio de comunicação entre os moradores das minhas margens? Eu me sentiria enfraquecido e já não me estenderia de borda a borda do meu leito, e temia que eu pudesse ser reduzido a um inexpressivo filete de água quase sem serventia. Por isso eu ansiava pela chegada do inverno, quando ficaria robusto e sentir-me-ia um pequeno rio.

De banhistas eu ouviria notícias de que as minhas águas iriam terminar num grande açude. Eis aí o meu maior receio: confundir-me com outras águas, perder a minha identidade. E as confidências, das quais eu era depositário? E as lembranças das terras por que passei? Dos amores que eu presenciei? Das rodas nos terreiros? Das alegrias com minha passagem? Onde eu iria guardar? A quem eu iria contar, se as outras águas nada de comum, tinham comigo? Eu não queria que nada impedisse meu caminho livre, mas pelo visto eu me aproximava rapidamente desse meu pesadelo. Disseram que quando o inverno chegasse as águas cresceriam e, continuaria a minha jornada, mas...

Mas o que? Eu me misturaria às águas de outros rios, bem maiores, e ninguém mais me reconheceria, e o final seria o oceano. O oceano, essa palavra que me metia medo, desde o meu nascer. Esse monstro hídrico, que massificava ás águas de todos os rios pequenos ou grandes. Seria o fim melancólico do Riacho Verde. Diziam que a enorme massa de água, ora verde, ora azul, se deslocava para os vários continentes, de populações de diversos idiomas. Eu não entenderia o linguajar dos banhistas, dos pescadores, dos tripulantes de barcos e de navios.

Mas eu ouviria também que eu não correria o risco de ser absorvido pela terra seca, ou as minhas águas de serem volatilizadas sob o sol inclemente do sertão. Eu me tornaria perene, eu teria vida, embora confundido com outras águas, mesmo sem o romantismo daquela correnteza passageira que se insinuava, passando entre roçados, sítios, levando alegrias e esperanças a muita gente.

Joao Fragso

Março/2018

Joca Fragoso
Enviado por Joca Fragoso em 01/02/2021
Código do texto: T7173810
Classificação de conteúdo: seguro