A GRANDE BATALHA CONTRA UM POTE DE MAIONESE E A VITÓRIA DO BEM SOBRE O MAL!

Da série: Contos pra sentir vergonha alheia

*Por Antônio F. Bispo

A irmã *Maria Santonilda está muito satisfeita hoje! Com a respiração ofegante e mãos tremulas ela está finalizando uma transmissão ao vivo em seu grupo de oração. Sente-se realizada e com a sensação de missão cumprida pelo grande feito que acabara de realizar.

Ela travou sozinha uma batalha contra um maligno pote de maionese e venceu!

A batalha se deu no seu pequeno quintal de 2x6 metros. Tudo foi transmitido ao vivo e ainda registrado para posteridade pelos seus seguidores, os irmãos do grupo Manto, Mistério e Retété.

Como líder e fundadora do grupo, todos os membros foram intimados a assistir tal cena épica, permanecendo sempre em “espírito de oração” em seus lares, ainda que distantes, para que a vitória dela fosse certa contra esse inimigo ardiloso.

Como todo fiel costuma dizer, deus usa os seus servos de diversas formas.

Esta mulher já tinha sido “usada por deus” diversas vezes para os mais variados propósitos.

Cada batalha mais árdua que a outra. Antes dessa, sua última missão tinha sido a de destruir uma imagem de gesso do santo padroeiro da cidade.

Ela fez isso pela madrugada com a rua vazia. A lâmpada da praça que iluminava o oratório tinha sido quebrada um dia antes “pelo poder da oração”, para que “deus” pudesse agir por meio dela sem nenhum embaraço. “Deus prepara tudo” - ela sempre dizia!

Agora, naquela gloriosa manhã, a irmã Santonilda estava mais uma vez sendo usado por deus para vencer o diabo, que segundo ela, em forma de produto um alimentício, entrava no lar das pessoas para destruir vidas, famílias, casamentos, empregos e até causar câncer nestas, sem que estas “saibam” que estão ingerindo um produto perigoso, criado possivelmente pelo próprio “coisa ruim” já que o rótulo estampava os dizeres tenebroso: “homens do inferno”!

Era isso que estava escrito no rótulo do pote. Ela lera e repetira dezenas de vezes aquela frase e se perguntava como alguém poderia ser tão cego de não enxergar aquilo?

Ao mesmo tempo ela sabia a resposta: somente uma pessoa como ela, com a vida no altar, que seguia todos os ditames da igreja e que fazia jejuns e orações constantes estava apta a enxergar tal armadilha do inimigo. Por isso as pessoas comuns não enxergavam.

Ela não era comum! Era ungida, batizada nas águas, no fogo e no espírito, além de profeta, missionária, dirigente de círculo de oração e a mais fervorosa líder de grupo de oração nos montes que a igreja já tinha visto!

Ela sentia prazer em repetir isso todos os dias para si mesma e para todos, mesmo sem que ninguém perguntasse. Mais prazeroso ainda era saber que estava sendo útil em missões tão secretas e que por diversas vezes já tinha salvo a humanidade dos ardis do inimigo, mesmo sem ser reconhecida por muitos de tal missão, mas se alegrava em saber que um dia seria recebida na glória pelo próprio deus por fazer feitos tão notáveis como esses, o de lutar e vencer um pote de maionese, de quebrar imagens de santos de gesso, de atanazar gays, satanizar ateus e de refutar qualquer um que assim como ela não estivesse na “igreja verdadeira”. Ah...como era prazeroso pensar em tudo isso!

Fazer prosélitos ao seu modo de crer e ser, era o seu segundo maior trunfo. “O mundo precisa de mais pessoas assim” - ela pensava consigo mesma!

Na transmissão, enquanto se gloriava de seu feito heroico, dizia que toda honra e glória era pra jesus. Era um misto de orgulho com arrogância, fruta de uma paranoia peculiar aos que compartilham de tal inutilismo.

Ser um instrumento de deus é o que ela mais almeja, principalmente se fosse para trabalhar no mistério, no oculto e no escondido! Serviços que só que tem a visão do espírito é capaz de enxergar, como ela mesma dizia sempre.

Naquele dia, depois de varar a madrugada orando e pedindo a deus um sinal de onde seria o próximo ataque do inimigo dessa vez, “deus ordenou” que ela fosse ao supermercado e lá o manto iria se desenrolar.

O dia era 21 do mês 1, do ano de 2021 do século 21.

- “Todo crente espiritual sabe que em datas assim, o diabo trabalha mais que em outros dias”. Ela dissera ao grupo na noite anterior, enquanto pedia aos tais que estes ficassem em “espírito de oração”.

Já que o diabo não dorme, ela também não dormiria. Ela não comera ou bebera nada nas ultimas 24hs e dizia que sua comunhão com deus estava mais veloz que uma Internet 5G.

Ela tinha certeza que até as 21 horas, 21 minutos e 21 segundos daquele dia, algo sinistro iria acontecer. Nem que fosse na Hora H do Dia D, deus a revelaria e a usaria como em outras vezes – ela pensava.

Pela manhã “deus disse” que ela fosse ao supermercado e lá seria revelado sua sagrada missão. Ela foi, fez algumas compras e entre as necessidades básicas acrescentou um pote de maionese. Ela não precisava e nem sequer gostava daquele produto, mas aquela era a missão que deus falara ao seu coração e assim ela o fizera.

Logo que ela comprou o que era necessário, ficou rodando à ermo até parar diante de uma seção de maioneses e encontrar ali o objeto da ira de deus, o recalque do diabo em forma de alimento. Foi assim que ela “descobriu” o que deus queria.

Havia dezenas de embalagens deste “produto do mal”. Ela desejou comprar todas elas para destruir, mas o seu dinheiro dava apenas para uma embalagem. Ela tentou questionar com deus, já que aquele produto não era algo novo e que outros crentes “cheios de unção” como ela já fizera diversos sermões utilizando-se de tal marca.

Em seu coração “deus falou” que a usaria de uma maneira mais gloriosa que os outros apesar de ser o mesmo produto. Falou ainda que uma embalagem destruída significava uma família inteira salva dos planos do capeta. Isso bastava!

Ela não mais questionou, pagou pelo alimento e veio às pressas “fazer a vontade de deus”.

De volta aos seus aposentos, ela fez uma oração, ungiu-se, montou o cenário para a filmar a “batalha espiritual” e partiu para cima do inimigo com unhas e dentes (que dizer com um martelo apenas).

Era a cena de guerra mais incomum de todos os tempos: de um lado um pote de maionese de 300g de pura infâmia e blasfêmia, pronto para causar diversos males ao “povo de deus”. Do outro lado, ela a irmã Maria Santonilda, com quase 40 anos de evangelho, e 70 quilos de pura unção e poder, pronta para ser usada como instrumento do deus vivo (como ela mesma dizia).

O reino das trevas ali representado por pote de comida e o reino dos céus representado por ela, a santidade em pessoa. A batalha dos séculos seria travada naquele instante.

Nem Alexandre o Grande, Dário o Persa, ou o Francês Bonaparte tiveram a audácia de arquitetar uma batalha tão colossal, de calcular com tanta exatidão as possibilidades de uma vitória. Mas ela o fez, pois estava sendo dirigida pelo próprio deus, o senhor dos exércitos, como ela costuma dizer enquanto marchava no poder e ministrava a palavra.

Cerca de 15 irmãos do “sapatinho de fogo”, membros do seu grupo foram as fieis testemunhas desse imensurável combate! Uma expectativa enorme se formara e todos torciam pela irmã Santonilda, apesar de temerem o pior. Afinal, o diabo é astuto e poderia ferir a irmã em um picar de olhos e isso quase aconteceu...

Toda a luta durou menos que 2 minutos. O inimigo jazia morto, esparramado, esmagado e triturado diante dos seus olhos e pés, mostrando pra ela mesma e para todos que assistiam o quanto o deus que ela servia era poderoso.

Em menos de 2 minutos mais um inimigo de deus tombara e os seus restos mortais estava sendo exibido ali no grupo como troféu! Logo depois seria enterrado sob forte oração para que mesmo “depois de morto” este não viesse ferir alguém ao pisar ou cavoucar a terra. “ O diabo é astuto”- Ela não cansava de dizer!

Com a mão esquerda suja do conteúdo pastoso meio amarelado, ela exibe com triunfo para a câmera 1 a logomarca marca da dita cuja: “homens do inferno” (era a 25ª vez que ela repetia aquilo na live)! Na mão direita ela exibe um martelo, objeto que fora usado “por deus e por ela” para desfazer aquela “maracutaia do capeta”.

Algumas gotículas de sangue estavam se formando nos nós de seus dedos, na mão que segura o martelo, misturando-se com o pó de vidro e pedações da tampa do vaso e o próprio conteúdo da embalagem.

Ela feriu um dos dedos e nem percebeu. Talvez todos eles! Ela ainda não sabe e isso pouco importa! “Importa é que O CÃO perdeu mais uma batalha em nome de jesus” - ela dizia!

Quando “deus se apossou dela” e a encheu de uma “fúria celestial” sem igual, ela parecia estar descontrolada, batendo, martelando, esmagando, triturando...de modo que o plástico, o vidro e o próprio conteúdo perecia ser uma massa só. “Foi igualzinho a Sansão que matou mil homens com uma queixada de jumento ao ser “possuído” pelo espírito de deus” – Ela dizia na live!

-“Mais uma vitória para o povo de deus”- ela completou!

Alguns dias antes ela vira um “servo de deus” pagar mais de 2 mil reais em uma TV tela plana para depois tocar fogo enquanto se deixava filmar “desmascarando satanás”. O registro está no you tube para quem quiser ver. Agora ela estava também realizada por tal feito e sentia prazer em gravar para os servos de deus aquela batalha brutal.

Para destruir tal recipiente e inutilizar seu conteúdo, apenas um fraco golpe de martelo seria necessário. Era só deixar cair ao chão de uma altura superior a 50 cm que a própria gravidade faria todo o serviço.

Mas ela queria mais! Uma violência descomunal fora empregada para destruir o perigoso inimigo de deus e somente o rótulo fora aproveitado daquele massacre, mesmo assim por que ela o retirou no segundo golpe, já que ela precisava deste inteiro para que pudesse mostrar aos seus condescendentes, resquícios daquele combate mortal contra as hostes infernais.

No sexto golpe ela bateu com tanta força, que um pedaço de vidro preso à tampa ricocheteou e veio em sua direção. Ela desviou a tempo de olhar para trás e ver que o vidro que quase a atingira ficara cravado em sua frágil porta de madeira do fundo da casa.

Ela berrou: “Tá vendo aí irmãos? Quer uma prova maior que estou fazendo a coisa certa e o inimigo está furioso comigo? O vidro veio em direção da veia do meu pescoço! Iria me furar na jugular e eu iria morrer afogada no meu próprio sangue mas o senhor me livrou! Justamente na sexta martelada! Por quê? Coincidência (ela perguntava ao mesmo tempo que respondia suas próprias perguntas)? Se repetimos o número 6 por 3 vezes vai dar justamente 666, a marca da besta! Isso apenas prova que ele está por trás disso e queria me silenciar pois estou destruindo os seus planos! Ele pensa que me engana, mas ele perdeu mais uma neste dia”!

Ela estava eufórica com tanta “prova” de que aquilo realmente era uma missão divina e o diabo a tentara atingir.

Gritos de glória deus e aleluias ouviu-se mutuamente do outro lado da transmissão após a contemplação desse “livramento miraculoso” e suas palavras motivacionais, dignas de serem escritas nos anais da história mundial.

Outra vez, com a mão ensanguentada ela exibia o rótulo da maionese, quase manchando as câmeras dos celulares que gravavam e transmitiam tudo!

Em outras épocas, os fiéis de uma religião enfrentavam os inimigos de seus deuses em campos de sangrentas de batalhas que poderiam durar dias ou anos. Estes traziam como prova de combate, vários ferimentos em seus próprios corpos, pertences do inimigo ou a própria cabeça deste empalada numa estaca ou dentro de um saco pingando sangue. Assim eles proclamavam as vitorias que “os deuses” lhes concediam quando pleiteavam por terras, colheitas, saques ou só pelo prazer de assassinar uns os outros em nome dos deuses.

Mas ali estava Maria, numa batalha perigosa, triunfando sobre o mal e o símbolo deste triunfo era aquele rótulo de um produto alimentício. Como em todos os casos de conquistas em nome dos deuses, aquela era mais uma para ser guardada na galeria dos heróis da fé. Salmos, cânticos e louvores deveriam ser criados para eternizar aquela memorável batalha e a memória desta heroína!

Naquele instante, ela acabava de ter um insight: “Deus” usando um irmão em profecia do outro lado do zap, desenrolava o rolo para ela, falando a respeito de outras missões mais perigosas que a essa sucederia.

Uma epifania depois de uma luta sangrenta como esta, era o selo de ouro que todo profeta gostaria de ter. O “espirito de deus” tomou a todos simultaneamente mediante tal manifestação. Todos falaram em línguas e rodopiaram no poder mesmo estando tão distantes.

....

Como as coisas mudam! Rapidamente a irmã Maria lembrou que menos de 4 anos atrás, ela e esse mesmo grupo que ali assistia, estavam em uma ferrenha campanha de oração para que deus destruísse o WhatsApp, o Facebook e todas as redes sociais, pois essas eram ferramentas do diabo para separar casais, desviar crentes das igrejas e trazer o mundo para dentro da “casa de deus! Agora estavam ali, todos eles, usando uma antiga ferramenta do diabo para fazer a obra de deus.

Durante os períodos tenebrosos da Covid 19, praticamente todos os cultos foram usando essa antiga ferramenta do demônio. Até mesmo as arrecadações financeiras foram on-line, coisas que seriam impossíveis se não fossem tais plataformas.

-“Deus usa as coisas que não são para confundir as que são”!

Essa foi a melhor desculpa que a irmã Maria arranjou para se defender do ataque de uma irmã que ela mesma difamou e humilhou publicamente diversas vezes em pleno culto anos atrás, valendo-se de sua “autoridade divina”. Ela perseguia tal irmã que usava tais plataformas como ferramenta de trabalho em seu comércio e quase chegou a ser excomungada por tal pecado. Se não fosse o valor considerável de seus dízimos, “nem o pó” dessa crente existiriam nas mãos dessas que martelam tudo em nome de deus.

- “Deus usa o que quer, quem quiser e na hora que quiser”!

Hoje a irmã Santonilda diz na cara da irmã “desconvertida” que ousa interrogar essa embaixadora de cristo, quando interrogada por estar usando as “coisas do diabo” para “fazer a obra de deus”!

....

Câmeras de dois celulares diferentes registraram toda a batalha. Ela decidiu gravar em ângulos diferentes para que nenhum detalhe fosse perdido.

Uma cam focava no inimigo sendo estraçalhado e a outra no rosto dela, nas feições de uma mulher santa, ungida de deus, que não usava maquiagens, que não cortava o cabelo, não se depilava, quase não via TV, não usava “roupa do mundo”, e ainda por cima jejuava e orava todas as madrugadas.

A transmissão encerrou, mas o “manto e o mistério” permaneceu até a hora que seu marido chegou e ela se dera conta que não tinha almoço pronto...

Outras aventuras da irmã Santonilda e sua trupe serão relatadas aqui, por esse mesmo meio. Aguardem!

Texto escrito em 24/1/21

*Antônio F. Bispo é graduando em jornalismo, Bacharel em Teologia, estudante de religiões e filosofia.

Ferreira Bispo
Enviado por Ferreira Bispo em 25/01/2021
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