COMENDO UVA NO PÉ

Meu pai atendia com grande zelo e alegria a italianada de Santa Felicidade. Não era pra menos, meu bisavô Giovanni lá viveu e criou seus treze filhos, na gleba de terra onde hoje existe o restaurante Dom Antonio. Foi lá que meu avô Natal Esmanhotto casou com Angelina Valente, e ainda jovens os dois deixaram a colônia rumo ao centro de Curitiba, onde abriram uma fábrica de bolachas, balas e doces.

Meu pai se formou em medicina a duras penas, e só não desistiu do curso pela insistência e apoio da minha mãe. Com quatro filhos pra educar e sustentar (outros dois vieram mais tarde), se viu obrigado a trancar a matrícula por três ou quatro vezes, só concluindo a faculdade com trinta e cinco anos de idade. Especializou-se em pediatria. Era um vocacionado, um sacerdote da medicina, muito caridoso com os pobres e necessitados. Atendia de graça, distribuía amostras grátis de remédios, e na falta destas, juntava às receitas dos mais pobres uma quantia em dinheiro para que fossem comprar na farmácia. Era um cristão praticante, de caridade anônima, e após sua morte foi homenageado com o nome de uma rua na colônia italiana que ele tanto amou.

Eu não perdia a chance de ir com meu pai até lá, nos dois ou três dias por mês que ele visitava seus pacientes que não tinham condições de se deslocarem até o seu consultório. Era uma festa em todas as suas chegadas, as melodiosas palavras do dialeto Belluno ganhavam fôlego e multiplicavam-se alegremente. Aquelas abençoadas famílias italianas o brindavam com suas melhores uvas – a rosada, a niagara, e a deliciosa Bergerac. Não raramente, ele recebia também de ‘tutte quelle buona gente’ dezenas de codornas, pra levar pra casa e saborear em família com polenta, vinho e muito amor. Isso sem falar nos legumes e verduras que toda santa vez lhe eram ofertados, em sinceras demonstrações de gratidão, consideração e amizade.

De minha parte, o que eu mais desejava era ficar na casa dos tios Idalino e Julia Valente. Eles moravam no terreno onde hoje está o Bradesco, e onde anteriormente funcionava o Restaurante San Remo. Tio Idalino, um homem elegante, de fala suave e postura nobre, e tia Julia, um poço de amor que correspondia exatamente à imagem que temos daquelas amorosas mammas italianas. Aos fundos da propriedade havia um imenso parreiral, com finíssimas uvas de mesa. Eu ficava embevecido e perdido no meio daquelas colossais videiras, escolhendo caprichosamente os cachos maiores e mais maduros, para saboreá-los vagarosa e contemplativamente ali mesmo, no pé. Comendo até não poder mais...ou até o retorno do meu pai das suas consultas.

Antes de voltar pra casa, muitas vezes parávamos no restaurante Tulio ou no Velho Madalosso (do primo Severino), pra bater um papinho e pegar uma generosa porção de frango a passarinho, polenta frita, risoto, lasanha, nhoque e macarrão, ou seja, daquela conhecidíssima, deliciosa e engordativa comida que todo curitibano que se preze já devorou ruidosamente mais de mil vezes, em um dos trocentos restaurantes da Bela e Santa Felicidade de todos nós.

(Marco Esmanhotto)

Marco Esmanhotto
Enviado por Marco Esmanhotto em 21/01/2021
Reeditado em 21/01/2021
Código do texto: T7165228
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