O Dono do Pão

19/01/2021

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Faço pão caseiro há algum tempo e minha mulher é fã incondicional. Não tenho receita definida, mas já peguei o jeito e doso as quantidades de forma bem precisa intuitivamente. Às vezes erro no sal e ela diz:

-Está apaixonado?

Adora esperar avidamente enquanto são assados, sentindo seu cheiro inebriante que infesta gostosamente o nosso chalé e como uma criança gulosa, vai tirando a manteiga da geladeira, pegando o mel e outros acompanhamentos colocando-os sobre a mesa, para assim que prontos, comê-los quentinhos.

-Fernandinho, seu pão cheira tão bem quanto é gostoso – diz, arregalando seus olhos azuis de alegria e gulodice faceira.

Ao retirá-los do forno e no aguardo para que esfrie a sua agitação aumenta, pois a volúpia em atacá-los é visível. Fica ansiosa.

-Corta logo vai, não aguento esperar.

-Calma, espere esfriarem um pouco! – falo, envolvendo-os em toalhas de papel para mantê-los úmidos e fofos.

Outra peculiaridade sua é gostar das extremidades, face inferior, superior e laterais dos pães, porque ficam mais queimados e cascudos. Ela corta-os deixando do pão só o miolo, o que me irrita, pois também gosto de casquinhas. Faz isso às escondidas, sabedora da minha insatisfação ao encontrá-lo todo desfigurado e ao inquiri-la olhando-a firme e incisivo, diz brincalhona:

-Ah, tem um ratinho aqui em casa, olha o que ele fez?

-Uma ratazana – respondo.

Essa “briga” pelo pão tornou-se frequente, uma mania de dois aposentados vivendo juntos diuturnamente, obrigados pela pandemia. Nossas ações se tornaram mecânicas e sistêmicas.

Para que ela não retalhe o pão, sou sempre eu a cortar as fatias para o nosso consumo nas refeições, tiro finíssimas lâminas, quase transparentes para comermos principalmente no café da manhã.

-Que pobreza Fernandinho!

-Se te deixar cortar, tenho que fazer pão todos os dias - replico.

Então, vieram a sua filha, o marido e a netinha passar uns dias conosco, e em um café da manhã juntos, cortava eu o pão daquela forma de folhas translucidas, relaxado e compenetrado, quando o marido me diz rindo:

-Racionamento de pão? A vida tá tão difícil assim? – brinca comigo.

Voltei-lhe o olhar, demorando alguns segundos para compreender a questão, quando a minha mulher deu uma enorme gargalhada e disse:

-É o dono do pão. Não posso cortá-lo, não me deixa por que diz que eu desfiguro o seu pão, fica bravo.

-Pois é, ela corta todas as cascas e deixa só miolo para nós. Por isso é que eu corto o pão.

-Mas podia aumentar a espessura das fatias, não é, o dono do pão? – pergunta ela me instigando.

-Sim, claro, desculpe. Estou tão acostumado que não percebi.

Começo a aumentar a largura das fatias. Ela me olha pedindo:

-Corta para mim a “bundinha” do pão mais queimadinha, que eu gosto, vai.

-Vai, corta a “bundinha” para ela vai Fernadinho. Cor-ta, cor-ta, cor-ta a “bundinhaaa” Fernandinho – cantam a filha e o marido fazendo algazarra e excitando a netinha, que sorri cativante com seus dois únicos dentinhos inferiores. Fui vencido.

Não houve como preservar a “bundinha” do meu pão. Cortei a extremidade ainda intacta, a outra já havia lhe dado. Ela feliz, junto com a netinha, batia palmas como uma criança

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 20/01/2021
Reeditado em 20/01/2021
Código do texto: T7164183
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