Não Mudou o Mundo!

Homenagem póstuma ao meu querido amigo de "namorico" Paulinho Mazurek

18/01/2021

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Estudei em colégio tradicional na cidade de São Paulo, fazendo primário, ginásio e científico, como era a graduação do ensino nos anos 60, 70. O fato ocorrido, que narro a seguir, se passou lá na quarta série ginasial.

A escola era e ainda é dos rotarianos, com foco na educação rígida, com algumas características bem definidas e rotineiras da época, como por exemplo:

As escadas internas de acesso aos andares das salas de aula do prédio escolar eram separadas por gênero, uma feminina e outra masculina;

Os moços não tinham uniformes específicos, podiam usar suas roupas. As moças tinham que usar camisa e meia branca, saia azul-marinho e sapato preto. Eram as regras.

Namorava uma moça que estudava de manhã, eu no período da tarde. Ela tinha uma amiga de classe muito próxima, que morava em edifício atrás da escola; um largo e amplo apartamento. A amiga namorava um amigo que estudava comigo à tarde também. Eram as duas judias. Tínhamos entre 15, 16 anos não mais, adolescentes na flor da idade, vivendo o dia a dia da vida com certa irresponsabilidade e negligência, iniciando os relacionamentos de fato.

Chegávamos eu e o amigo pelo menos uma hora antes de começarem nossas aulas do período da tarde. Minha namorada e a amiga já nos esperavam para ficarmos um tempo juntos, no "namorico". Às vezes, matávamos as primeiras duas aulas e íamos para a terceira antes do recreio.

A amiga era bem liberal, desinibida, de personalidade contestatória, tomando certas atitudes que confrontavam com a rigidez da escola. Minha namorada era mais "certinha".

Não aceitava que as escadas fossem separadas por gênero e só as moças usarem uniforme. Achava um absurdo o machismo dessas posturas e vivia dizendo:

-É inaceitável essa história de termos que ser assim discriminadas. Acho que devíamos nos rebelar contra isso, não acham?

-Concordo contigo quanto à discriminação das mulheres, mas a nossa educação é assim, o que faríamos? - questiona minha namorada.

-Chocar as estruturas da escola. Alguma ação que chame a atenção de todos para esse absurdo.

-O quê, por exemplo? - pergunto.

- Ir sem o uniforme ou ir e se trocar lá dentro, por uma roupa bem espalhafatosa, chocante, assistindo às aulas assim.

-Mas, o professor vai te retirar da sala, dar uma advertência te prejudicando na matéria.

-Mas vou mostrar que o mundo muda.

E assim, seguiu ela com a ideia de causar impacto nas estruturas da escola nos nossos encontros vespertinos. Até que um dia em que não fui ao seu apartamento, cheguei a escola em reboliço, com os alunos comentando o ocorrido daquela manhã.

-O que aconteceu? - perguntei para um colega de sala no pátio antes de subir para a aula.

-Não soube?

-Não!

-Uma moça da quarta série da manhã subiu as escadas com a saia do uniforme bem curta e sem calcinha. Foi uma loucura, as monitoras correram atrás dela, ela foi para a sala de aula e se negou a ir para a diretoria. O Diretor a repreendeu lá e ela respondeu que era um absurdo ter escadas separadas para moços e moças e só elas usarem uniformes - era sua forma de protestar. Foi o maior caos, a escola parou, todos acompanharam a cena na entrada da sua sala. Foi obrigada a colocar uma calça emprestada. Ligaram para o pai buscá-la, mas veio o irmão. Vai ser expulsa, se já não foi.

-Não acredito.

-Os marmanjos que a viram subindo as escadas assim, vibraram.

No recreio, fui à casa da amiga revolucionária, saber o que ocorrera. Entro e ela, na sala com o irmão. Feliz e risonha diz:

-Balancei as estruturas da escola hoje.

-É, mas pelo visto vai ser expulsa - completa o irmão desanimado.

-Pois é, não lhe disse! - respondo.

-Mas valeu a pena. Precisava ver as caras das monitoras, dos professores e do diretor, que foi à sala e me deu o maior sermão. Respondi-lhe que era o meu protesto quanto às escadas separadas e a obrigar só as moças a usar uniforme. Ao sair fui ovacionada pelas moças da minha classe. Virei celebridade.

-E agora, o que vai fazer? - questiono.

-Devo ser expulsa e ir para outra escola que não seja assim como essa, mas com mais liberdade e igualdade entre homens e mulheres.

Nossas vidas seguiram caminhos diferentes, tempos depois soube que fora morar em Israel, casara e vivia lá pacatamente. Ela não mudou o mundo.

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 19/01/2021
Reeditado em 19/01/2021
Código do texto: T7163263
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