Diário do morador solitário
Meus dias morando sozinho...ah como odeio me prestar a produzir um diário, como me repugna a ideia de me expor, ainda assim o faço, corajosamente, vamos adiante! Minhas ações são variadas e esquisitas na casa nova, na verdade casa é maneira de falar, pois trata-se de um apartamento modesto e limpo; perambulo do quarta a sala, da sala ao quarto, incontáveis vezes, esfregando as mãos, em um gesto adquirido há muito tempo, é preciso paciência para desenvolver algumas manias. Falar sozinho também, tenho diálogos em voz alta comigo mesmo, como pode isso, amigo bisbilhoteiro? Ler o diário alheio é delicioso! Como nos parece sórdida a vida do outro!
Solitário, posso ver a que ponto cheguei, pois fique sabendo, que esqueci a senha do wi-fi da minha própria casa, quer dizer, casa, é jeito de falar porque na verdade é um apartamentozinho...cogitei a possibilidade de pedir a minha namorada que me interditasse, e que tudo que fizesse deveria antes ter a aprovação da minha tutora.
Ouvindo música em um aplicativo chamado Spotify, sou um assinante “premium” e isso me dá o privilégio de pular as músicas que não estiver a fim de escutar, e a não ter interrupções comerciais enquanto me delicio escutando algumas musiquinhas, caminhando em São Bernardo do Campo.
Um poema, assim do nada, para uma garota, chama-la-ei-la (uma baita mesóclise!) de minha “doce terra encantada”:
Não vá embora
De uma vez por todas
Não vou implicar
Se quiser transar
Com outro cara,
Um colega de trabalho,
Um desconhecido
Quando meus olhos
Não estiverem presentes,
Fique à vontade, bela garota!
Livre, minha garota!
Só não vá embora
“Respiramos o mesmo ar e vivemos sob o mesmo período astral – isto é uma enorme e incompreensível coincidência! Estamos aqui, ambos, sob o mesmo céu, as mesmas nuvens, olha prá cima! Mesmo de noite, é possível distinguir nos céus um punhado de algodões deslizando nas asas do vento, transmutando-se toda hora, todo tempo, formações encantadoras, apocalípticas!”
“Doce terra encantada, seu olhar me venceu! A juntura de minha coxa, se rompeu tocada pelo anjo e eu já não posso me manter de pé, as pernas tremem de paixão e por um instante, perco as forças. Tem um momento sutil, um átimo, que antecede o beijo, decisivo na durabilidade da união!”
Então vou confessar logo, falar sobre mim é falar sobre música – eu tô com essa porra do aplicativo chamado Spotify o tempo todo ligado, gente boa! Ser um assinante premium me permite pular músicas, ouvir offline...já contei isso antes? Perdão, minha memória apaga-se a cada dez minutos, como naquele filme com o Guy Pierce, “Amnésia”. Então, ia contando que agora por exemplo, tô curtindo o som do Ed Motta “Espaço na van” – nisso tudo, o curioso é que de maneira inconsciente, estava escutando o dia inteiro um quarteto de “Luizes”, (Ayrão, Gonzaga, Melodia e Vieira).
Declaro-me incapaz de ir fundo em minha pseudo – auto – psicanálise, procuro por uma tal criança interior...é apenas a fumaça da ganja rebolando e escapando dentre meus dedos.
A minha vassoura e a pá estão sempre à mão, para o caso de surgir a necessidade de algum pequeno trabalho doméstico, que de maneira geral, consistia em arrastar para lá e para cá o produto das guimbas de marijuana, suas cinzas e alguns fósforos riscados, e então reuni-los na lixeira após a varrição.
E ainda cuidar de três serezinhos adoráveis, tenho o prazer de apresentar-lhes minhas companheiras verdes, Sra. Fetônia e as mocinhas Orquídea e Flor da Fortuna – que vicejam cada uma no seu terrário, com muita luz, oração e principalmente pelo grande poder de Deus!
Há poucos metros de minha janela, a avenida passa iluminada, movimentada, ruidosa, ligando a Anchieta e a Robert Kennedy. Lá fora, podiam todos facilmente me ver aqui dentro de casa, apartamento, flanando nu pela sala, com as janelas escancaradas, as pessoas todas lá embaixo podiam sem forçar as vistas me ver aqui dentro...não era novo para eles um homem nu, como há muito tempo dissera o pregador “o que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do sol”, de maneira que todos eles já estavam acostumados.