Fadiga

21.11.2018

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Fui visitar minha Mãe. Está morando com minha irmã em cidade do interior do estado, a cerca de 150 km, não mais que duas horas de carro. Faz quase 60 dias que não a vejo. Saudades!

Está com 95 anos, viúva há mais de dez, lúcida, mas, como uma vela acessa há muito tempo, está se acabando, se consumindo: perdendo a sua luz! Cabelos brancos e finos como algodão, olhos negros sem vibração, opacos, sua íris não se destaca mais - teve mácula ocular, enxerga pouco e ouve mal também. Mas ao sorrir, reaparece sua vivacidade e alegria, ilumina toda a sua fisionomia - recupera a sua vivacidade - se transforma e volta a ser ela, minha Mãe.

Chego e a encontro sentada em cadeira na sala da casa - local quente, com o ventilador ligado, ela parada, estática com seus pensamentos, quietinha. Minha Mãe!

- Oi Mãe! Tudo bem?

- Oiii! Quanto tempo hein! Esqueceu de mim? Faz mais de dois meses que esteve aqui, não? Saudades de você! - diz em sua fala fina, mansa e cansada. Voz de Mãe.

- Eu também estou com saudades! - disse, abraçando seu corpo frágil, beijando sua cabeça, seus cabelos finos e macios, cheirosos. Cabelos de Mãe.

Começamos a conversar, cumprimentara antes minha irmã, que fazia o almoço e da cozinha ouvia a nossa conversa. Os três netos e bisnetos, meninos, estavam passando o fim de semana com elas. Corriam, gritavam e riam na maior algazarra, com a vibração espontânea e contagiante das crianças. Era um sábado de novembro, quente e úmido.

-Fazem a maior bagunça, não? É uma delícia ouvir suas risadas! - diz minha Mãe.

-Sim, tempo bom esse! Tenho saudades - respondo.

-Mas você era muito pior que eles! Lembra do apelido que seu tio te deu: "demônio" por causa da sua agitação?

-Sim, claro!

-Você era terrível! Agitado, não parava, mexia em tudo, quebrava tudo. E quando colocou o pneu na capota do fusca do seu pai! Você devia ter 3, 4 anos! Como você fez? - fala espantada.

-Não me lembro, Mãe, faz muito tempo...

-Você devia ser hiperativo" como dizem agora. Naquela época era agitado, inquieto. Parecia que tinha um bicho dentro de você!

-Pois é, acho que sim!

Seguimos na conversa a três, minha irmã de vez em quando dava palavras de lá da cozinha, o cheiro de molho de tomate da macarronada que preparava perfumava a casa.

-Tua irmã está fazendo o molho de tomate igualzinho ao meu! Ela tá cozinhado muito bem! Tá sentindo o cheiro?

-Sim, é inconfundível!

Mas, a nossa relação de Mãe e filho não era assim antigamente. Fora sempre muito rígida comigo e com minha irmã. E era eu que recebia a culpa do que ocorria de errado na casa. Minha fama predominava e mesmo que não fosse o responsável, não tinha como me defender, era considerado culpado antes de tudo. Sabia que vinha castigo, quando a escutava chamar o meu nome, soletrando todas as letras com ênfase e altura e com voz brava,! Fiquei traumatizado por ser tratado assim. Coisas de Mãe.

Mas o tempo passou, e nossas vidas seguiram cada uma o seu curso, e agora, estava ela ali frágil e dependente. Mas sua energia sempre aparecia, assim como o seu humor - fora toda a vida alegre e brincalhona, mas rígida também, e muito!

Almoçamos. Os moleques na comilança rápida e falada, ou melhor, gritada, típico das crianças ativas, talvez até hiperativas, para saírem correndo da mesa e voltarem aos seus joguinhos de computador; mas antes, se empanturraram de doce e refrigerante. Ela escutava tudo o que falavam, brincavam ou brigavam, deliciando-se, sorria placidamente com a meninice e a pureza deles. Coisas de Mãe, avó e bisavó.

Ficamos, depois da batalha gastronômica dos pirralhos, os quatro na mesa: eu, meu cunhado, minha irmã e minha mãe. Tomamos café com chocolate (bombons) - ela adorava ao término da refeição, o café com chocolate - e seguimos na nossa falação de final de almoço. Assuntos vários, mas nada de importância. Trivialidades.

- Fico sempre com sono e cansada depois do almoço! O médico disse que é fadiga. O que é fadiga? Nunca soube dessa doença. - na sua voz rouca. Voz de Mãe.

- Não é doença não, Mãe. Sabe quando a gente pega um arame e abre e fecha ele até quebrar, isso é fadiga, o material vai se desgastando até quebrar. - lhe digo didaticamente.

- Ah, então eu logo vou quebrar, é isso! - com o seu riso limpo e franco, voltando a ser minha Mãe!

- Vamos subir agora, estou cansada! Não tenho mais aquela energia de antigamente. Estou ficando velha! - disse de forma sarcástica e irônica. Sempre brincalhona, minha Mãe.

- Ficando velha! É assim que tem que pensar, esse é o espírito, Mãe! Com noventa e cinco anos e só agora diz que está ficando velha! Ehehehe... perfeito! - rimos.

Aguardo ao seu lado para ajudar a se levantar, passo-lhe sua "amiguinha" - a bengala - ela se apoia nela e no meu braço e levanta com cuidado da cadeira. Caminhamos devagar até a escada - seu quarto ficava no andar de cima, subimos a escada pausadamente, degrau por degrau, parando de tempos em tempos. Ofegava por causa da "fadiga"!

-Essa bendita fadiga tá me quebrando aos poucos, né? - diz sorrindo.

Chegamos ao seu quarto e ela se deita devagar. Conversamos mais um pouco.

-Tchau querido, não demora muito a vir. Tem que vir me ver uma vez por mês! Olha que o arame quebra hein!

-Sim claro, Mãe, venho sim!

-Ah, um segredão para você, tá.

-Dois pra você, Mãe.

Abraço seu corpo arcado e delicado, beijo seu rosto quente e macio. Rosto de Mãe!

"Segredão" é a sua forma de dizer: eu te amo!

Sim, Mãe, eu te amo também, sem segredos.

Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 18/01/2021
Código do texto: T7162448
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