O Purgatório dos Sinaleiros

 

 

            Os sinaleiros das grandes cidades se transformaram em motivo de terrível aflição. Assim que paramos nossos veículos bafejando vapores, aquecidos pelo vapor e efeito estufa em nossas hodiernas ilhas de calor, somos assediados por toda a sorte de vendedores, panfleteiros e pedintes.

 

            Chegam a fazer fila. Em determinado sinaleiro, sinto-me como em uma feira:

 

            - Olha o limpador! Limpador de pára-brisas! Vai um doutor?

 

            Aceno que não.

 

            Os panfleteiros correm, como se suas vidas dependessem disso. Alguns, mais exacerbados, simplesmente lançam os panfletos janela adentro, sem que você tenha tempo de recusar.

 

            - Não quero!

            - Não quer por que, doutor? Deixa de frescura e pega logo!

            - Sim, senhor. Com medo de apanhar, só me resta lotar o carro, até o teto, com propagandas de artigos que não quero.

 

            E quanto aos pedintes?

 

            Sou de coração mole, feito clara de ovo mal-passada. Desmancho-me frente ao sofrimento alheio. Devo ter feito algo em outra vida para nascer com um sentimento de comiseração tão intenso. Ou seria fruto das pregações que ouvia, quando criança, em meu colégio católico: pobre não vai para o inferno! Já sofreu muito na Terra. Rico! Ser rico é uma desgraça! Vai tentar passar pelo fundo da agulha! Eu olhava para aquela agulha estreita e ficava imaginando... Sacanagem de Jesus! Tinha que pegar tão pesado? Diante daquela metáfora indiscutível, só me restava sentir remorsos por fazer três refeições por dia e ficar com a consciência pesada por comer sobremesa. Acho que recuso doces por medo de ir ao inferno.

 

            Certa vez encontrei um sujeito, pernas arqueadas, mal se sustentando em uma muleta, ar de gente séria. Pedia ajuda para comprar um aparelho ortopédico e deixar aquela vida. Conversamos. Mostrou-me um atestado médico recomendando o equipamento. Meti a mão no bolso. Lembrei-me das sobremesas, do camelo, da agulha e lá foram pelo menos dez reias – uma fortuna na época, visto que andava duro.

 

            Ajudei ao próximo, fiquei feliz. Semana seguinte o cara estava lá. E na outra, e na outra. Um dia veio para o meu carro com a mesma conversa mole. O aparelho doutor!

 

            - Mas você já não juntou o suficiente?

 

            - Já, quase, falta pouco, muito pouco – devo ter ajudado com mais um real. A cotação do cara caiu.  Seis meses depois e o cara nas muletas, sem aparelho, arrecadando rios de dinheiro. Aproximou-se. Fechei o vidro com raiva. Comprei bilhete sem volta para o inferno. Enquanto meu dia não chega, vou usufruindo ao máximo de qualquer ar-condicionado que se me depare.          Passaram-se os anos e o cara ainda está lá com as mesmas muletas e as perna tortas, o mesmo ar de gente séria. O atestado médico deve ter amarelado, minha paciência azedou.

 

            Fiquei ainda mais indignado ao ver, em reportagem de jornal, um pedinte flagrado pela imprensa. Usava uma cadeira de rodas. Contaram que faturou cerca de setenta reais em uma única manhã. Quando se achou sozinho, levantou-se, carregou a cadeira de rodas e colocou no porta-malas de um chevette.

 

            Tento resistir a não dar esmolas, a não receber panfletos e a não comprar nada nos sinaleiros. Certa noite um cara fez malabarismos com fogo. As tochas voavam, era um sujeito muito habilidoso.

 

            - Ajuda ele pai! – minhas filhas, no carro, gostaram do “show”.

 

            Saquei algumas moedas. O cara recebeu e agradeceu com gestos circenses, exagerados. Às vezes, ceder aos saltimbancos torna-se irresistível. Enquanto aguardo o juízo final nos sinaleiros, em meu purgatório, reflito: o camelo, a sobremesa, a agulha...