Reco
14.11.2018
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Juventude, 18 anos, estudando para o vestibular: queria entrar na faculdade. Alistara-se no ano anterior, era obrigatório. Aguardava a sua chamada, com angústia Não queria ser convocado, iria atrapalhar a sua vida, perderia dois anos pelo menos!
Um dia chega a "cartinha" com o selo do exército: estava convocado. Teria que se apresentar no mês seguinte, abril, no quartel da Intendência.
-Intendência? O que será?
Faz pesquisas com amigos que já tinham prestado o serviço militar: Intendência é onde se armazenam todos os mantimentos, fardas, e tudo o mais para abastecer os quartéis, menos armas e munições.
- Pai, fui convocado! Não posso ir! Vou perder dois anos lá, perco o vestibular e o 1º. ano da faculdade! E agora?
Seu pai se preocupa:
- Vou falar com seu tio que conhece algumas pessoas, militares, para ver como fazer. Se acalme que tudo se resolve.
-Tá bom; só não quero cortar o cabelo daquele jeito de milico!
Idos dos anos 70, mudanças significativas nos costumes, com calças boca de sino, camisas floridas abertas no peito, cabelo comprido e cheios, "à lá Mel Gibson".
Chega o dia de ir se apresentar. O pai lhe dissera que o tio falara com o comandante da unidade, para ao chegar ao quartel procurá-lo. Sabia da sua situação.
Não ficou tranquilo, mas foi para lá no seu fusca marrom claro. Parou longe e caminhou para a entrada da unidade militar. Estava nervoso. Colocou roupas surradas e velhas para não chamar a atenção.
Longa fila de jovens aguardava para entrar no quartel. Ele segue na direção da guarita, guardas armados ali o olhavam, quando ouve:
- Ei, aonde você vai?
Ele se vira, e atrás, o soldado que lhe perguntara, chega perto dele.
- Preciso falar com o comandante!
-Ah, falar com o comandante, tá. Fim da fila!
- Mas quero falar antes com o comandante! - responde meio brusco ao soldado.
Ele lhe sorri e repete: - Fim da fila, "reco"!
Chega outro militar que parece ser superior ao soldado:
- Que acontece aqui, soldado!
- Esse reco quer falar com o comandante, sargento. Quer passar na frente de todo mundo!
- Ah! Falar com o "chefe", sei, sei. Põe ele no final de fila e será o último a entrar. Falar com o comandante, todos querem!
Vai para o final da fila, irritado! Aguarda mais de uma hora. Chegara cedo, 6:30 da manhã, pois queria se liberar o quanto antes para ir embora de lá. Entra no quartel e todos os recrutas perfilados no pátio, atônitos para saber o que iria acontecer.
Vem o comandante e começa a fazer um discurso sobre a situação do País, da Pátria, do que era a Intendência e da necessidade de pessoas fortes. E de atletas, pois as equipes de basquete e futebol dessa unidade eram a elite do exército. Seu capricho. Assim, iria percorrer as filas e escolher os novos recrutas. Ele gelou, era alto, quase 1,90m, porte atlético e poderia ser escolhido. Arqueou os ombros, se abaixou um pouco e ficou olhando para o chão, disfarçando-se.
O comandante passeava pelas filas, olhava os rapazes e ia escolhendo.
- Você! Vai dar um ótimo pivô, alto desse jeito!
Ele não fora escolhido! Aliviado, respirou fundo.
- Amanhã nova escolha. Sargento ponha esses "recos" pra trabalhar até o fim da manhã. Aqui ninguém é preguiçoso ou fica parado. - grita o comandante.
O Sargento assumiu o comando, gritou ordens e começou a separar grupos de recrutas. Cada um tinha um soldado responsável. Ele ficara com o que encontrara logo cedo, na entrada do quartel.
- Que azar o meu. Podia ter caído com outros, mas logo ele. Vai pegar no meu pé direto!
- Recrutas, se alinhem. Vou dividir em dois grupos: um vai catar a grama que está entre os paralelepípedos do pátio do quartel. - disse o soldado.
Ele separa um grupo de 5 recrutas para catar a grama do pátio; ele não está nessa turma.
- O outro grupo, vai limpar os banheiros dos oficiais Era o seu. Que dia!
- Vamos "boyzinho", vamos limpar a merda do comandante, você não queria falar com ele? - disse-lhe rindo .
Segue o grupo para o prédio do comando da unidade militar e cada um dos recrutas é colocado nos banheiros. Ele, por último, segue com o soldado até uma sala no final do corredor. Na porta a placa diz: Major Soares - Comandante. Ele gelou! O soldado bate na porta:
- Entre! - O major está sentado na sua mesa e olha para os dois. O soldado bate continência:
- Senhor, viemos aqui para limpar o seu banheiro. O recruta aqui ao chegar ao quartel hoje queria falar com o Sr. antes de todos!
- Falar comigo antes de todos! Leve o recruta para a limpeza. Não tenho tempo nem assunto para tratar com esse "reco"!
Não acredita no que ouve!
- Vamos "boyzinho", vai limpar o banheiro do chefe. - diz rindo.
O soldado o deixa no local dizendo que quando terminasse fosse para o pátio e aguardasse novas ordens. Ele começa a limpar a pia lentamente para passar o tempo. Demora bastante.
Vem o soldado:
- Tá enrolando "boyzinho"! Vamos catar grama! Vai ralar a mãozinha....
Vão para o pátio. Está cheio de "recos" agachados "catando grama". Recebe do soldado um pedaço de lata de óleo de cozinha, uma tira, para passar entre as juntas das pedras onde crescem os tufos de grama. Tortura!
Passa o resto da manhã "catando grama".
À noite na sua casa nervoso, fala com o pai o que ocorrera naquela manhã. O pai liga para o irmão que conhecia os militares, conta os fatos, escuta o que fala o outro e desliga.
- Vai falar com seu contato amanhã. Por enquanto, vai fazendo tudo o que te mandarem fazer no quartel. É assim mesmo, eles não gostam de quem tem "contatos" e judiam até liberarem!
Dia seguinte, em fila no pátio, o Major conclui a escolha e ordena:
- Todos para o barbeiro, vamos cortar o cabelo e depois podem ir pra casa. - grita.
O Sargento organiza a fila.
Tudo o que ele não queria, estava acontecendo. Espera desanimado. A fila começa a se formar procura ficar mais para o final dela.
Vê os jovens saindo da sala do barbeiro com os cabelos rasos, curtos, a cara redonda, alguns sorriem, outros de cara fechada. Cada um que sai é ovacionado e elogiado:
- Vai o cara de melancia; cabeça de coco! - e assim vão recebendo seus apelidos. O riso é geral, mas muitos nervosos. Os soldados se divertem. Chega a sua vez, um dos últimos, entra na sala e fica estático quando vê quem é o barbeiro: o soldado que o barrara na entrada do quartel no primeiro dia!
- Ah! O "boyzinho"! Vai ficar "rapadinho" hoje, ehehehe! Pode sentar na cadeira, vamos. Não tem como fugir, vou caprichar no corte. Ah, eu não sou barbeiro tá, mas como é a máquina que corta o cabelo, é fácil e todo mundo fica igual - ria o barbeiro e os outros soldados que estavam ali se divertindo com os recrutas.
Sem escapatória e conformado, sentou na cadeira, máquina zunindo na sua cabeça e seu cabelo foi para o chão em tufos e tufos: Carequinha! Tudo o que não queria, acontecia...
Volta para casa, surpreende a mãe e a irmã sentadas para o almoço, o pai só à noite encontraria, com o novo corte de cabelo, "careca milico":
- Mas que coisa esses militares hein! Judiam mesmo! - diz a mãe.
Vai para o cursinho, chega e os amigos o veem e fazem gargalhadas e gozação com sua cabeça raspada. Entra na classe, aula de matemática, com o professor muito brincalhão e gozador na porta:
- Temos um "reco" aqui turma!
- Re-co, re-co, re-co, grita a classe uníssona com risadas e assobios!
Era só o que faltava, agora era o "reco" do cursinho! Não havia nenhum outro.
Mas seu martírio ainda não acabara, seguia indo todas as manhãs ao quartel, fazia suas obrigações, ficara amigo do soldado barbeiro. E assim passou a primeira semana.
O pai lhe dizia para aguardar até o fim da escolha do comandante, pois segundo o tio, não seria escolhido, e então, dispensado.
Início da segunda semana, na fila já reduzida, o comandante circulando por ela para a escolha dos atletas, para a sua frente:
- Tem "pinta" de jogador de basquete, vai jogar no nosso time! Sargento, mais um escolhido!
Ele não entende mais nada! Não era possível! O tio lhe dissera que não seria escolhido, e agora, estava no time de basquete do quartel!
Tudo o que não queria, acontecia...
Sai do quartel, vai para a sua casa e liga para o seu pai:
- Pai, fui escolhido! Não é possível! Como vai ser agora?
- Vou falar com seu tio. Falamos à noite em casa
No jantar:
- Seu tio disse para ir nessa semana ainda e que na segunda feira que vem, vai ser dispensado, sim! Ele conversou com o superior do major da Intendência, explicou sua situação e garantiu que vão te dispensar.
- Certeza pai? Olha, tudo o que o tio disse foi ao contrário!
- Agora ele falou com o "bam bam bam"; garantiu!
- Tá bom.
A semana passou, seu cabelo cresceu um pouco, mas pouco, e na segunda feira seguinte, dia da " libertação", o sargento lhe diz:
- Recruta! Tem que aparar o cabelo, tá grande, vai lá no barbeiro!
-Está fazendo isso por que sabe que vou ser dispensado, pois tem vários outros que também estão "cabeludos" e não foram cortar! Tudo bem hoje vou embora, corto com prazer! - pensou consigo.
Foi para o barbeiro soldado que ficara amigo:
- Ah, te mandaram deixar a última marca antes de ser dispensado né! O sargento é um sacana!
- Pois é, mas tudo bem, hoje eu saio. Como sabe?
- Aqui todo mundo sabe de tudo!
- Você está aqui por que quer ou também foi escolhido e louco para ir embora?
- Não, eu sou voluntário e quero seguir a carreira militar. Aqui eu tenho casa, comida, roupa, posso estudar sem pagar nada, fazer esporte e se me destacar, virar oficial.
-Sou de família pobre, passei fome já, e agora no exército tenho como sobreviver e ter um futuro! E ganho um dinheirinho com o qual ajudo minha mãe. Nem todos têm as oportunidades como as que você tem! - completa o soldado barbeiro.
Ficou comovido e admirado com a fala do soldado e ponderou que tinha a sua razão, mesmo tendo que se submeter à doutrina e rigidez militar.
Mas se não o fizesse, talvez sua vida fosse outra, pior.
A vida sem desafios, não vale a pena.
Fez o corte, pouca coisa, e se despediram:
- Boa sorte "soldado, barbeiro"!
- Boa sorte "reco boyzinho"!
Nunca mais o veria.
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