O "lerdinho"
09/01/2021
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Fato inusitado e interessante me aconteceu na praia, mostrando a natureza nos seus detalhes e peculiaridades.
Fui sozinho, a esposa ficou em casa resolvendo problemas de interessados em locar nossas quitinetes: estamos com duas, de três, desalugadas. Efeito Pandemia.
Parei o carro no estacionamento junto à duna na entrada da praia. Tirei o guarda-sol, a cadeira e a sacola com livro e caderno de anotações.
Caminhei por onde teria que subir duna íngreme, mas que cortaria muito o trajeto até onde costumeiramente nos instalamos.
Escalei a montanha de areia e desci a rampa suave, aplainada pelo ventar constante, até à orla do mar. Cheguei ao nosso local, perto de uma placa indicativa da sua extensão até ali, 1.800 metros. Não havia ninguém próximo.
Montei o guarda-sol um pouco inclinado contra a direção do vento, era sudeste e fraco, para que não voasse, caso aumentasse a sua intensidade. Estava devidamente instalado.
O calor era forte, perto de 30 graus já às nove e meia da manhã. Resolvi dar um mergulho para me refrescar, já que a água aqui é fria, ou mais fria que a das outras praias; fria no verão, gélida no inverno.
Indo ao mar, vejo perto, alertado pelo seu piar forte e esganiçado, um quero-quero agachado e em posição de alçar voo, o que aconteceu vindo à minha direção ameaçadoramente, como querendo me afastar dali!
-Que estranho esse ataque. Será que tem filhotes por aqui?
Parei e procurei ver se haviam outros perto, filhotes talvez, pela sua agressividade. Ele veio novamente contra mim, e quase me atingindo, brecou e mudou de direção no ar. Segui o meu caminho, intrigado.
No mar, mergulhei e me refresquei bastante, a água estava deliciosa, revigorante. Voltando ao guarda-sol, reencontro-o de guarda, agressivo, vindo novamente rasante ao meu encontro, gralhando forte.
-Caramba, deve ter filhotes por aqui perto, com certeza. Vou cuidar!
Sentei na cadeira de praia sob o guarda-sol, e os procurei nada vendo. Peguei meu livro, muito bom por sinal, de contos de Josué Guimarães, escritor gaúcho contemporâneo de Érico Veríssimo, e comecei a lê-lo, mas sempre de olho no danado do quero-quero e seus cumplices.
Lia o conto “O Cavalo Cego”, interessantíssimo, da história rio-grandense da época de Getúlio Vargas, onde um Coronel Caudilho seu amigo, conta a história sobre a chacina de seu compadre e familiares, ele atrás dos assassinos e encontra à noite, na mata perto da fazenda onde houve a matança, um belo cavalo negro, possante, mas cego, que junto com outros iguais, teriam matado os facínoras; bem surreal.
Em dado instante, cuidando dos pássaros, vejo uma cena real, engraçada até: desce da duna um quero-quero, devia ser a mãe, no seu passo rápido, e logo depois, atrás dela, um filhotinho “pequetito”, uma graça, no seu caminhar rapidinho de perninhas curtinhas. Sigo-o e, aparece outro filhotinho, o segundo, indo na mesma direção do primeiro. E, para o meu espanto, aparece outro, o terceiro, um pouco mais atrás, descendo a duna. Três filhotes de quero-quero, incrível. Já vira casal com um, mas três, inédito.
O mar esteve ressacado nestes últimos dias, e deixara, ao baixar a maré, muita sujeira que esses pequeninos, orientados pelos seus pais, estavam ciscando agora sob sua guarda. Não sabia o que comiam.
O pai ficava mais distante; a mãe mais perto, cuidando para que, em caso de perigo iminente, subisse rapidamente a duna com os pequenos seguindo-a, um a um, em fila indiana. O interessante é que havia um deles, não sei se era sempre o mesmo, que ficava mais atrás, meio “lerdinho”. Mas eram muito engraçadinhos no seu andar curtinho e rápido. Fazia-me rir, vendo-os nesse ritual.
Observei-os por minutos, quando apareceu um cachorro, que ao ver os pais quero-quero, correu para eles e tentar pegá-los. Fiquei preocupado, pois os filhotinhos estavam próximos, e o cão poderia morde-los. Mas, o casal voou espertamente em direção oposta ao dos filhotes, que rapidamente, subiram um a um para o interior da duna onda há vegetação, escondendo-se nela do perigo. O “lerdinho” mais atrás.
Os dois pássaros fustigavam o cão com voos rasantes, tirando-o do local onde estavam seus filhos. Uma perfeita manobra diversionista deles, para a preservação da ninhada e espécie. A natureza é peculiar e interessante de fato. Instigante!
Minha preocupação também era com os gaviões, que habitam a região e sempre voam pela praia, pois são os três pequeninos, presas fáceis. Mas pela agressividade de seus pais, talvez tenham medo de enfrentá-los. Não apareceram.
Passado o perigo do cão, continuei a acompanhá-los no ritual de desce e sobe a duna dos três, com o “lerdinho” por último.
Levantei acampamento, e ao iniciar a subida da duna de volta ao carro, o quero-quero pai perto começou a piar forte, abaixando-se e pronto para me agredir novamente, mas vendo que ia embora, poupou-me das suas investidas.
Ao longe, nas dunas junto à mãe, os “quero-querinhos” ciscavam. O “lerdinho” mais distante do grupo, como sempre!
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