Encontro com Verinha

Encontro com Verinha

A tarde modorrenta de fevereiro me deixava molenga. Tanto, que quase não reparava nos outros. Era desconfortável, o fio de suor escorrendo pela testa, e outro chegando à nuca. Um incômodo esse mormaço diabólico.

De longe ouvi chamarem meu nome. Deve ser o calor, pensei. E de novo. Vinha do automóvel preto que diminuiu ao largo do meio-fio. A porta foi se abrindo antes mesmo de estacionar de vez. Era a Verinha! Nossa, que maluca! Ela saiu destrambelhada e desembestou em minha direção gritando meu nome. Pelo menos algo novo acontecia naquela tarde peçonhenta.

O salto alto, o vestidinho floral, os lábios vermelhos corriam de braços abertos para mim:

— Ah que saudade!

E lá veio o aperto de amor sem fim, o costumeiro abraço como se fosse o último.

— Ah, que saudade de você! - Ela repetiu enfática.

E o perfume dela inundou o mundo. E meu suor impregnou o cheiroso vestido floral da Verinha.

— Você dá umas desaparecidas, hein, Verinha! Onde andou, garota? – disse eu tentando me desvencilhar do abraço gostoso que tinha mesmo gostinho de ser o último – Humm, você está toda frescura, toda cheirosa. Me conta o que anda fazendo? Como é bom te encontrar, minha amiga! Olha lááá, hein, tá de motorista particular, hummm. O cara está te esperando.

Quase não deixei que ela respondesse. Aquele calor não me permitia ser eu. Mas aí ela fez uma carinha de curiosa, esticou as sobrancelhas, e abriu o enorme sorriso vermelho:

— Precisava muito te encontrar. Tentei te ligar, você mudou de número? – E aposto que também não tem o meu. E aí ela olhou para o BMW que a aguardava – É o Jofrey, bonito ele, né?

Poxa, ela não mudou nadinha. Apressada para contar tudo ao mesmo tempo, tão de qualquer jeito que as histórias até perdem o fio da meada. Parece que não fala coisa com coisa.

— O tempo não passa para você, Verinha? Está tão bonita! – Insisti.

E ela sorriu de novo jogando o franjão loiro para trás. Nesse instante o perfume dela se espalhou e tomou conta de mim.

— Ah! Sei lá. Acho que mudei sim. Mas, e aí, o que você tem feito, hein? Encontrei sua irmã faz uns quinze dias. Ela estava embarcando para Londres, e eu para Paris. Mas, nem conversamos, eu estava tão atrasada, você me conhece, estou sempre atrasada. – E riu uma gargalhada controlada.

— Paris? Foi turistar na Cidade-Luz? Que chique. – Brinquei.

— Não! Fui acertar meu “casamento” – disse quase cochichando. Disse, e olhou de novo para o Jofrey que tinha um cigarro aceso preso nos dedos. E eu fiquei ali com cara de espanto. A Verinha iria finalmente se casar! Quem diria! Justo ela que nunca conseguiu alguém que se apaixonasse por ela. Na escola ela até entrou em depressão. Era bonitinha, toda certinha, mas tinha um dengo grudento que nenhum cara se arriscava. Foi nessa época que nasceu a mania “abrace como se fosse o último abraço de sua vida!”. Às vezes a gente estava com pressa e rolava uma briguinha com ela, mas isso nunca a afetava. Além do mais, ela dizia que só namoraria se o cara fosse rico, e em escola de periferia seria difícil conseguir alguém que pelo menos morasse em casa própria.

— Casar? Como assim? Por que em Paris? – Havia muitas perguntas ainda, mas decidi fazer uma de cada vez. O sorriso vermelho dela não estava tão vivo agora. Ela olhou para o lado e lá estava a sorveteria do Lucio, bem ali encostadinha com a gente. Percebi que os olhos dela brilharam. Era nosso point com a turma. Muita risada e amizade. Depois o tempo afastou todo mundo. Eu fui morar no interior com a tia Bete onde fiz faculdade, e a Verinha iria para a casa da vó Laura, tinha acabado de perder os pais num acidente. Foi triste essa fase. Separação e perda.

— Nossa, que animal! Essa sorveteria ainda existe? Vem, vamos tomar um sorvetinho. – Olhei para o relógio, ainda daria tempo de pegar o banco aberto, se não demorássemos muito ali.

— Você está com pressa? Precisa ir? Me dá seu número. Tentei te ligar muitas vezes. Que chato a gente não conseguir falar com as pessoas... Mas aí eu viajei e só voltei ontem de Madri.

Tratei logo de corrigi-la:

— Paris.

Ela sorriu de novo com a boca vermelha bem larga. E aí chegou o sorvete de pistache que pedíamos, como quando éramos adolescentes.

— Você se casou, pelo que sei... Sua irmã me disse quando nos encontramos. Nem conversamos direito, mas acabei perguntando de você, ela estava em uma escada rolante subindo e eu em outra descendo. E ela gritou: “casou há 5 anos”.

— Casei, sim. Já temos duas filhinhas, uma de quatro e outra de dois aninhos. Uma delas, a mais velha, se chama Vera, em sua homenagem. Não queria nunca esquecer nossa amizade.

E ela parou. Ficou estática me olhando. A boca franzida tremulava, e os olhos iam marejando lentamente, enquanto o sorvete ameaçava escorrer até seus dedos esmaltados num tom cenoura. Depois chorou com vontade, como se fosse a última vez. Levantou-se abruptamente, veio até onde eu estava, e me abraçou muito apertado enquanto se desfazia em lágrimas me lambuzando do pistache que já estava impregnado em sua mão. Abraçou-me como se fosse o último abraço de nossas vidas.

— Que emocionante, amiga! Vou chorar uns três dias. Ai, meu Deus! Vou chorar em casa. Obrigada. O-bri-ga-da! – E me abraçou de novo, desta vez abraço curto e apertadinho. E foi saindo com a boca tremilicando, sem olhar para trás.

Fiquei olhando sem entendê-la, como sempre: “Caramba, ela não mudou nada. Não termina as histórias, sonha alto, e ainda mente bastante. Mas, é adorável, a Verinha”.

Corri para meus afazeres, sempre pensando nela, nos abraços, na boca vermelha e no perfume. Pensei também no Jofrey, e se tivesse tido tempo, responderia que ele é mesmo bonitinho. Ih, nem trocamos nossos números! Ela é marcante, invejo a Verinha.

Tenho saudade dela. Hoje penso com certo consolo: “Ainda bem que ganhei abraços como se fossem os últimos de nossas vidas”.

Nunca mais a vi desde aquele fevereiro, há dezoito anos.