Segundo Ato

No escuro da noite, na penumbra do quarto, enfiado debaixo dos cobertores ele se esconde. Medroso, inútil, um sopro de vida, um resto de nada. Na rua apenas o som das vozes distantes, dos jovens, e a respiração dos velhos dormindo em suas casas, de janelas abertas, esperando nosso senhor virem busca-los para uma eternidade tão sonhada.

Coração acelerado, respiração agitada. No calor intenso debaixo dos cobertores ele sua, gotas rolam pelo rosto e molham o travesseiro velho, sujo e já sem espuma. Forrando o colchão um lençol amarelo, não pela cor natural, mas devido à falta de lavagem, ao desleixo a imundície.

Seu corpo é sujo, sua alma também. Seus dentes, os poucos que ainda sobram na boca são pretos e com pedaços de restos de comida. Os cabelos não conhecem mais tesouras, a barba, suja e esbranquiçada cobre o que ainda resta de seu rosto imundo. Suas roupas estão encardidas. A camisa de cores listradas, de vermelho e branco, de azul e cinza é ainda o que sobrara de um presente dado pela família, o último; de um natal longínquo e feliz.

Um rato passa por sobre ele, ele não está nem aí. Sente o cheiro de podre do animal e isso não lhe causa repulsa, talvez um pouco de ânsia, mas isso passa rápido. O ruído do bicho lhe causa arrepios na espinha. Ele se levanta, joga os cobertores no chão e com passos trôpegos caminha em direção ao nada. A janela batendo com o vento, o som do silêncio, a luz de um puteiro piscando freneticamente enquanto seu coração pula descompassado, sem compromisso.

Dia seguinte segundo ato. A porta aberta, o pão empedrado em cima da mesa, uma ponta de faca com as sobras de uma manteiga embolorada. Mordida azeda, gosto de coisa estragada na boca. Ele cospe o que acabara de mastigar enquanto a barriga ronca de três dias sem nada.

Nas ruas o abandono. Gente jogada pelos cantos, enroladas em cobertores cinzentos. Fogueiras acesas a luz do dia, bem perto do sol escaldante. No vai e vem frenético da cidade ele se esconde ou tenta. Na fila da marmita do governo ele se anima, vai poder finalmente matar aquilo que lhe mata dia após dia, a fome.

Num pedaço de isopor, arroz, uma carne de aspecto estranho, e uma coisa branca e amarela, parecendo um purê de batatas. Foda-se, é comida. Faminto ele come feito um animal, lambendo ferozmente o fundo daquilo, passando os dedos engordurados e os chupando loucamente.

A barba suja de molho, a barriga satisfeita, o coração feliz. Fabrício, de 25 anos. Na rua desde os 16, gay. Expulso de casa pelos pais. Humilhado pela sociedade. Por pouco não desistiu da vida, mas ainda bem que a vida, tão preciosa não desistiu dele. Ele sabe que vai sofrer e muito, mas não se importa. Na casa abandonada que virou a moradia ele entra. O lençol carcomido é jogado fora, ele ganhou outro de uma desconhecida na rua, tem também um travesseiro novinho, cheiroso; um banho até que cairia bem, Fabrício sairia pela vizinhança em busca de água.

Fernando F Camargo
Enviado por Fernando F Camargo em 02/01/2021
Código do texto: T7150185
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