Cotidianos XVI – Almas Gêmeas em Tabatinga II

Naquele sábado o Sol saiu radiante. Poucas nuvens no Céu, pediam praia e sossego. A família reuniu-se e fomos aproveitar o dia maravilhoso na bela Praia de Tabatinga II, Município de Conde, Litoral Sul da Grande João Pessoa, capital da Paraíba.

O mar estava plácido e uma leve brisa embalava as folhas dos coqueiros. Guarda-sóis salpicavam a areia, e banhistas nadavam e brincavam com as ondas mansas que conseguiam ultrapassar os arrecifes...

Meu neto, Ric, de apenas cinco anos e oito meses de idade, em costumeira brincadeira, olhou para mim, e petulante, desafiou:

-Vovô, vamos apostar corrida até a água? Quem chegar por último, é um caranguejo sem cabeça!

Apenas sorri e fiz um risco com o dedão do pé na areia. Fizemos posição de largada e ele mesmo contou:

-Um... Dois... Três e... JÁÁÁ!

Saímos em disparada em direção ao mar. E é claro que segurei as passadas... Para a alegria do menino, eu sempre era o “caranguejo sem cabeça”!

E ficamos lá... Brincando de tubarão e tubarinho... Ele era o “tubarinho”! Nadávamos e mergulhávamos... De vez em quando, pegávamos sementes de mangue, e com essas sofisticadas armas, mergulhávamos e ficávamos caçando Megalodontes. Calhaus no fundo arenoso, eram os tubarões pré-históricos.

Numa das pausas das brincadeiras, ele ficou em silêncio absoluto. Coisa muito rara naquela criança extremamente loquaz. Estranhei, e preocupado olhei para ele.

O garoto estava quieto e olhando fixo para a areia.

Olhei na direção.

Dois homens, deitados na areia, se abraçavam e se beijavam.

O garoto pegou na minha mão, olhou para mim, olhou para a areia, novamente para mim e perguntou:

-O que eles estão fazendo, Vovô?

-Estão se beijando, criança! Respondi simplesmente.

-Vixe, Vovô! Pensei que somente homens e mulheres fizessem isso... Arrrght! Beijar na boca!

Fiquei algum tempo sem saber o que dizer. Como explicar para aquele menino, ainda que fosse extremamente sagaz para a idade, que dois homens e/ou duas mulheres podiam beijar-se com a mesma naturalidade que seus tios com suas esposas? Como explicar a subjetividade da atração física e emocional entre duas pessoas do mesmo sexo?

Travei!

Ao longe, um iate passava lentamente, aproveitei o ensejo e tentei mudar de assunto. Toquei no ombro dele para desviar-lhe a atenção, e apontei para o barco que navegava ao largo. Ele olhou rapidamente para o iate e voltou novamente a atenção para os dois homens que continuavam os beijos
.
Depois de um tempo olhando a cena, ele, como sempre fazia quando queria perguntar algo sem saber como efetuar a pergunta, olhou-me fixamente e ficou lá, parado! Esperando...

Olhando de volta para o menino, eu podia ouvir o zumbido do meu cérebro procurando uma saída... Uma explicação plausível!

Então eu lembrei de uma vez em eu falei para ele que a lógica indicava que determinada coisa aconteceria... E aí ele perguntou o que era lógica.

-Ric, você lembra do significado de “lógica”? Perguntei.

-Claro, Vovô! Dando uma explicação bem simples, como você disse, é quando uma coisa tem relação com a outra, né?

Continuei perguntando...

-Você lembra dos desenhos que falam dos deuses do Olimpo? Do Zeus... Do Ajax...Do Poseidon... Lembra?

-Lembro sim, Vovô! E o que é que isso tem a ver com aqueles homens!?!?

-Pois é, Ric! Há muito tempo... Muito tempo atrás... Logo depois da extinção dos dinossauros. Na Terra, só existiam os deuses no Olimpo, e outros seres que habitavam o nosso planeta...

-E que seres eram esses, Vovô! – O menino vivia interrompendo as minhas explicações com novas perguntas.

-Calma, menino! Vou chegar lá... Esses seres eram muito poderosos e velozes, Ric! Tipo o Sonic, aquele do desenho animado. Eram poderosos e velozes porque eles possuíam quatro braços, quatro pernas, dois corpos e duas cabeças. Eles eram assim, porque eram seres emendados um ao outro. – juntei os dedos indicadores para servirem de exemplo visual - Então, eles tinham força dobrada. Siiim, Ric! Quase ia esquecendo de dizer. Esses seres, na grande maioria, eram constituídos de um macho e uma fêmea. Os dois eram humanoides, melhor dizendo, parecidos com os humanos como os conhecemos. Mas, também existiam seres, em minoria, ou seja, em menor número, que eram constituídos de dois machos ou duas fêmeas, emendados, claro! E nem assim eram menos poderosos. E entre eles existiam os mais discretos... Tímidos! E os mais exibidos... Os que gostavam de aparecer!

O assunto despertou a curiosidade nata do garoto, e momentaneamente ele esqueceu a dupla na praia.

Me animei!

-Continuando a história, Ric! Eles eram tão poderosos, velozes e orgulhosos de suas excepcionais forças e habilidades, que um dia resolveram desafiar os deuses do Olimpo. Eles também queriam ser deuses. Viverem no Olimpo também! Mas eles eram meros semideuses, seres terrenos. E os deuses? Ora, os deuses eram seres celestes, melhor dizendo, do Céu! É claro que os deuses, zangados com a falta de respeito dos semideuses, declararam guerra contra eles. Seguiram-se batalhas épicas... Muitas batalhas! Mas deuses são deuses, né Ric? Não demorou muito e os seres celestes venceram a guerra contra os seres terrenos.

-E aí, Vovô? Os deuses exterminaram os seres hiper, mega super poderosos, como o meteoro exterminou os dinossauros?

-Não, meu garoto! Zeus, que além de líder e senhor da justiça dos deuses, era também senhor dos raios e dos trovões, como castigo, resolveu separá-los. Para isso, mandou milhares de raios afiados como navalhas para a Terra. Esses raios quando encontravam os seres poderosos – fiz um gesto com a mão como se fosse uma faca -, “zip”, os partia ao meio....

-E eles não morriam, Vovô?

-Não, Ric! Eles eram quase imortais! Porém, no momento em que eles eram separados, perdiam todos os poderes e transformavam em simples humanos....

-Humanos, Vovô?

-Sim, Ric! E esses humanos separados, depois se misturaram uns com os outros e se espalharam pela Terra e a povoaram. E para deixarem os deuses mais calmos, já que não eram mais poderosos, passaram a reverenciá-los, a adorá-los e oferecer oferendas, dar presentes para eles....

-E aí ficou tudo “de boa”, Vovô?

-Em termos, Ric!

-Em termos? Como assim, Vovô?

-Quando eu digo “em termos”, Ric! Eu quero dizer em parte... Tipo assim... Os humanos adoravam os deuses, e os deuses ficavam calmos, felizes e até os ajudavam de vez em quando... Até aí, tudo bem! Acontece, que os humanos, que eram os antigos semideuses, nunca deixaram de uma parte procurar a outra... Aquelas que foram separadas pelos raios de Zeus... Lembra? É que lá no interior da mente deles, num lugarzinho chamado de subconsciente, eles nunca esqueceram que um dia, uma parte vivia emendada na outra.

-E os deuses não ficavam zangados com isso, não?

-Não, Ric! Zeus e os demais deuses sabiam que eles até podiam se encontrar e viverem juntos novamente.... Mas sabiam também que nunca mais poderiam se unir e voltar a serem poderosos, semideuses, como eram antes. Então, os deuses não davam importância para a união física deles... Isso, quando uma parte conseguia encontrar a outra.... Como eu te expliquei, é que quando eles se separaram, umas partes se misturaram com as outras... E isso dificultava demais uma encontrar a outra.... Entendeu, Ric?

-Mais ou menos, Vovô! Agora, acho que começo a entender por que os homens adultos vivem atrás das mulheres adultas.... Acho que eles estão procurando a outra parte deles.... Né, Vovô?

-Exato! Mas não esqueça, Ric, que também existiam seres que eram dois machos emendados... Ou, duas fêmeas, também emendadas! Atualmente, Ric, dois homens ou duas mulheres. É por isso, que às vezes, a gente vê dois homens e/ou duas mulheres vivendo juntos.... Andando de mãos dadas e até se beijando.... Vai ver, uma parte encontrou a outra... Entendeu agora, Ric?

-Mais ou menos... Êêêêeeiiii, Vovô! De repente eu percebi uma coisa...

-O quê, Ric?

-Você e a Vovó... Quer dizer que você e a Vovó se encontraram? Uma parte encontrou a outra?!?!?

-Acho que sim, Ric! Deve ser por isso que a gente vive junto tem mais de quarenta anos...

-Então é por isso que aqueles dois homens estão juntos ali na areia...????

-Pode ser que sim.... Pode ser que não, Ric!

-Como assim, Vovô?

-E que às vezes, um ser acha que encontrou a sua outra parte, mas é a parte errada... E deve ser por isso que às vezes, os casais vivem juntos por um tempo e depois se separam... Assim como o seu pai e sua mãe...

-Sei...

-Pois é, Ric! Quem sabe, um dia, sua mãe, assim como o seu pai não encontram a outra parte deles. Mas uma coisa eu tenho certeza, Ric! Seu pai e sua mãe, mesmo separados, nunca vão deixar de te amar... Nunca esqueça disso! E agora, Ric, vamos deixar isso prá lá e vamos pegar um "jacaré" naquela onda parruda que vem ali...

-Vamos nessa, Vovôôôô!!!!!!!
 
João Pessoa-PB
Jan/2021