José, o teimoso

18.10.2018

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Ele caminhava na minha frente subindo a rampa do viaduto que dava na esquina de avenida, titubeante com seu bastão; era cego!

Roupa puída, descolorida, cabeça branca, seguia com o seu toque - toque no chão que lhe indicava o caminho. O acompanhava, preocupado. Chego perto e vejo que não tem os olhos, estão fechados, barba branca a fazer, camisa com gola surrada, pessoa sofrida. Simples. Estamos na esquina, muito movimento e difícil a travessia da avenida:

- Aonde o senhor vai?

- Vou descer até a Fradique.

- Quer ajuda?

Ele me pega no braço firme e começa a falar.

- Venho desde a Oscar Freire, e agora vou descendo até lá.

- Mora lá?

- Não! Moro pros lados da Raposo Tavares. Ando a pé direto pela cidade, e o Sr. sabe né, a procura de uma ajudazinha, a vida não é fácil, mas não reclamo.

Sua fala é tranquila e certa.

Atravessamos a avenida, as pessoas cruzam nos olhando, ele seguro no meu braço contando a sua vida. Era alegre.

- Faz tempo que tem essa deficiência?

- Desde pequeno, dos 4 anos. Tive toxoplasmose, morava no sitio pros lados de Presidente Bernardes, um dia me deu um febrão de quase 45 graus, convulsão e fiquei assim. Minha mãe não sabia o que fazer, longe de hospital. Mas não reclamo e não me lembro muito do que via, é melhor assim, a gente não sofre. Deus faz as coisas certas, e acho que ele me deixou assim para que eu passasse por essa vida na escuridão para depois encontrar a luz!

- Não acho justo! Acho que Deus não deveria fazer assim com as pessoas, estamos aqui para sermos felizes, a vida é muito bela para não ser vista.

- Mas não posso reclamar. Tive época, mais jovem, que queria quebrar o mundo, revoltado, bebia, era um trapo. Dois amigos cegos se mataram, um se jogou no metrô Santa Cecilia e outro tomou vidro de remédio para dormir.

- Pois é. Não sei se ficasse como você se aguentaria a escuridão.

- Mas eu estou bem, não sei como é a claridade, vivo assim faz mais de 65 anos, estou com setenta, e não reclamo. É como eu tenho que viver! Eu sou teimoso! Não podemos perder a vontade e a força, não é mesmo, ficar em casa reclamando, bebendo, é fácil! Sou teimoso! Saio para rua, ando e ando pela cidade e tenho muitos amigos, sabia?

Descendo a rua, ele apertando meu braço e falando mais e mais de suas histórias.

Vivia com a mãe de 90 anos, era filho único, não tinha parentes. Falava de forma direta, sem rancor ou tristeza- a sua realidade que aceitava e convivia, sem reclamar. Teimoso!

Sentia-me pequeno ao seu lado e vendo ao redor as pessoas, carros, lojas, enfim, o que para nós nos faz alegrar a vista, para ele nada significava.

- Tenho amigos no Centro, na Oscar Freire, na Rua Pinheiros, na Fradique, e é para lá que vou me encontrar com uma amiga, uma senhora árabe que é muito boa, sempre me ajuda, ela mora na Cardeal quase esquina com a Fradique!

- Os amigos são nosso maior patrimônio! - digo

- O coração das pessoas é que é o maior patrimônio! - ele responde.

Perfeita sua colocação que me emocionou. Chegamos à esquina da sua rua que era perto da estação do metro que eu ia pegar.

- Estamos agora aqui na esquina da Fradique e à direita vai dar na Cardeal, na casa da sua amiga - digo.

Pego a carteira e tiro o que tinha nela, oitenta reais, e ponho no seu bolso da camisa.

- O que é isso?

- Uma ajudazinha, oitenta reais, guarde bem para não te roubarem, e não vai gastar em cachaça, hein!

- Muito obrigado meu amigo, vou levar para casa para minha mãe e comprar comida! Sabe, ela com noventa anos, eu cego, tem dias que não temos o que comer.....Mas como sou teimoso, saio na rua e sempre encontro amigos de coração, como o Sr.!

E qual o seu nome?

- Fernando. E o seu?

- José, o teimoso! - responde sorridente.

Ele sobe a rua com seu toque-toque na direção da sua amiga e eu fico na esquina esperando abrir o sinal para atravessar a rua, emocionado.

Lágrimas contidas, mas com uma enorme vontade de chorar!

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 29/12/2020
Reeditado em 29/12/2020
Código do texto: T7146748
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