Todos os bichos das asas grandes sentem medo do vento

Finalmente a borboleta se livra do casulo, suas asas imensas paralisam por instantes, sem saber o que fazer. Então o vento assopra de leve e ela aprende a voar. Um tanto desajeitada, pousa na flor da cor rosa exposta no jardim. Tudo tão doce – pensa – tateando com as pernas finas os pequenos e frágeis pistilos, até se perder dentro das pétalas. Então o vento retorna mais forte, assopra, assopra, livrando a borboleta da flor, mas levando-a incontrolavelmente para bem longe, até que seja engolida pelo mar.

Ponto de espera. Um gole de café. Os dedos alisam os teclados, buscam palavras. Escrevo entre quatro paredes, solitário, porém não silencioso. Ouço músicas num volume suave, misturada com o barulho das teclas do computador. De uma hora para outra, por sugestão de um amigo, passei a escutar Thchaikovsky. Balanço a cabeça num dançar lento e prazeroso.

Os tempos atuais estão me transformando numa pequena fagulha de um bicho das asas imensas que sente medo do vento.

Comprei um carro novo, mas sinto falta do velho. Tudo de antes é melhor, eu penso assim e não consigo fugir. Ah, Thchaikovsky durou meia hora e já me causa melancolia. Onde foi que guardei aquela música do Dire Straits?

Eu não quero mais falar do antes, preciso fechar a janela e me esconder do vento, permitir o passado ir embora, olhar para frente, somente para frente. Mas antes, beberei a última dose de saudosismo e atravessarei o estreito terrível: “you´re so far away from me”, a voz rouca e pausada de Mark Knopfler me invade. Pauso as mãos sobre o teclado, nada impede os sussurros puxando o meu rosto para dentro de coisas que talvez nunca tenham existido.

Ainda escorrem pelo meu corpo algumas gotas da chuva que apanhei lá fora: a mulher do penteado inflexível me atendeu tentando vender seguro para o carro novo, o leve tremor nos seus olhos a denunciam exatamente no momento de explicar os riscos contidos no contrato. Desde muito novo aprendi a reconhecer um mentiroso pelos olhos: há um leve tremor nas pálpebras, vislumbram imagens distantes, uma gotícula de lágrima ameaça despencar a todo momento.

Assinei o contrato do seguro, mesmo sabendo dos riscos. Não tenho mais tempo para discutir pequenos detalhes.

O cheiro de chuva passada é um convite para testemunhar o sol que já vai caindo no final da estrada.

O carro novo é automático, basta acelerar. Sinto falta da embreagem. O rádio liga no girar da chave, aciona meu velho pen-drive, as músicas também são antigas, Elton John, Billy Joel, Madonna, sinal fechado, um bocejo. Quando eu era jovem – ah, lá vou eu de novo, atrás dos estranhos rumores que ainda me aprisionam – pensava no sono como uma fuga, alguns momentos longe da cruel realidade, ainda que algumas vezes o sonho fosse pesadelo. Ah, essas águas da chuva lá fora, indo embora na enxurrada, se soubessem o meu passado, não iam querer voltar comigo, porque na viajem encontro cenas que talvez não tenham acontecido e pergunto: porque não? E tudo pode se tornar verdade.

Preciso acordar, voltar ao presente. Sinal verde. Abro os olhos e no antigo quintal ergo cidades, transformo os pés de mangas de outrora em edifícios modernos. Será que só eu percebo que chove e os passarinhos pairam num céu imaginário?

Sempre foi assim. A nítida sensação de ser diferente me oprimia, me sentia um unicórnio, uma nuvem, um senhor ocupando o corpo jovem de uma criatura de longas asas.

O tempo passou e agora sou Saturno devorando o próprio filho.

Retiro o pen-drive e toco no dial do rádio do carro à busca de uma música moderna: um pastor ora fervorosamente, outro toque, um sertanejo chora o amor perdido e meu dedo acelera mais que os pés, sintonizo diversas estações, orações e mais orações, o rádio é a nova igreja, insisto até encontrar uma moça chamada Katy Perry, vou deixa-la cantar até o sinal fechar, ela é atual, dos tempos modernos, pelo menos eu penso assim. Katy também é melancólica, me remete ao pobre Thchaikovsky, o grande compositor da vida infeliz, preso ao pesadelo de não se aceitar como realmente era. Devia ter fugido de casa e nunca buscado a paz num copo de cólera. Quem sou eu para julgá-lo se ainda possuo cascas do casulo e só saí de casa aos vinte e cinco anos? A fuga é difícil, às vezes impossível. Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos e morreu logo depois, sentado, solitário num banco de praça. Tolstoi, como é mesmo aquela frase? “Se queres ser universal, cante sua aldeia”. É isso que eu tento fazer. A minha aldeia vive intensamente em mim, nela quase sempre sou um bicho das asas enormes.

Sussurros do passado retornam, ouço nitidamente a voz do Renato Russo contando o fim de um namoro: “só terminou pra você” ele dizia e eu sentia uma dor imensa, a pontada aguda no peito provocada pelo amor que não ocorreu, a paixão louca pela garota desconhecida. Não existia nada, mas era tudo segredo. E no devaneio, dentro de mim, tinha uma especial vocação à rosa, a tudo que é rosa, rosa o nome de mulher, rosa a flor, rosa a cor, rosa a dor que nunca desvendei. A dor que eu sentia sem ver, sem saber, doía, mas era bom, sem isso, impossível viver. Era tudo, e não era nada, era o mundo todo e não tinha ninguém.

“Só terminou pra você!” Desconheço resposta mais genial para a dor do amor.

Dire Straits fica triste de repente. Onde guardei a música do George Michael? O vento entra por debaixo da porta, me envolve, assopra nos meus ouvidos: os insetos de largas asas têm medo de mim, posso jogá-los na imensidão do mar – ameaça num gorjeio frio e eu sorrio – ainda sou larva e as paredes do meu quarto formam um casulo.

Prossegue em mim a necessidade de coisas atuais, só por isso acelero o carro, atravesso o dia de sol escaldante e no meu rosto fica a marca da sombra de uma árvore das folhas que nunca caíram, provocando o seco zumbido e depois um silêncio apavorante e mórbido.

Vá vento, assopre os insetos de longas asas, eles precisam aprender a voar.

E no rádio encontro uma música do Emicida e os sussurros finalmente se desprendem, fecho os olhos, “o sol só vem depois, o sol só vem depois” e novamente tento ser poeta, escrevo frases soltas (que depois juntarei) com os dedos apontados para o vazio depois da porta: se aqui estamos de passagem, então é melhor reparar os detalhes da paisagem, fixar os olhos no solo sagrado no qual a fruta haverá de amadurecer, antes que seja tarde, à tardinha do dia que cai, após a noite apodrecida de rostos escondidos de máscaras, da madrugada sem sabor, logo o novo sol vem, sempre vem, mesmo que seja depois do sopro forte do vento.