Lara

Lara estava concentrada, sentada em sua mesa de trabalho.

Uma colega recebe um telefonema. Conversa, desliga e fala:

-Otávio acaba de falecer.

A colega não estava falando com Lara, nem sabia que ela conheceu Otávio.

Lara estremeceu. Impassível como sempre, não esboça nenhuma reação. Desde muito cedo aprendeu a não demonstrar seus sentimentos. Sobretudo as tristezas, as dores, as angustias. Mas em seu íntimo fica profundamente entristecida. Termina seu trabalho, sua jornada. Se despede e vai pra casa.

Chega. Maurício, seu marido, está distraído e distante como sempre. Buscando consolo ela diz:

-Estou muito triste hoje.

Ele pergunta:

-Por quê? O que houve?

Como se não tivesse o mínimo interesse em saber, como não ligasse pra isto.

Ela responde:

-Coisas minhas.

Ele volta à atividade que estava fazendo, sem dizer mais nada, sem nenhuma palavra de consolo.

Ela sai. Vai tomar seu banho sem derramar nenhuma lágrima. Depois jantam em silêncio como sempre acontece nos últimos tempos. Ela está mergulhada em seus pensamentos e lembranças.

Ela levanta-se da mesa. Senta-se na varanda. Maurício sequer se aproxima dela. Sai e vai fazer alguma atividade. Nunca houve muito amor entre os dois e ultimamente estão muito distantes. Apenas convivem civilizadamente.

Lara se perde em pensamentos, em lembranças. Ninguém nunca soube daquele primeiro amor de sua vida. Um amor platônico, lindo como todo primeiro amor, inesquecível como um amor que não se realizou e que poderia ter sido o melhor de todos.

Como um filme passando por sua cabeça, lembra-se do dia que o viu pela primeira vez. Tinha apenas treze anos mas seu corpo já se transformava em um corpo de mulher. Ela estava com um vestido rosa curto, justo e decotado e ele a devorou com os olhos. Naquela época os hormônios fervilhavam nela. Mas não deu importância a ele. Ele nunca foi um homem bonito. A partir daí eles começaram a flertar e nasceu um amor adolescente que no entanto nunca se realizou. Trocaram poucas palavras, muitos olhares e sonharam muito mais que viveram.

Ele nunca foi um exemplo de bom moço, aquele que serve para uma menina boazinha e obediente. Mas quem disse que o coração aceita regras e rédeas? Ela como mocinha obediente em sua suposta indiferença o ignorava. Mas por dentro tremia toda vez que ele a olhava com um olhar penetrante e provocativo e sorria dizendo palavras soltas para chamar sua atenção.

Ela se mostrava indiferente e fria a tudo isto. Mas por dentro se sentia deliciosamente envaidecida e feliz com estes sinais.

Ela buscou em sua memória, lembrando de cada vez que o viu durante todos estes anos. Cada sinal, cada olhar, cada sorriso que ele deu e que estavam gravados de forma indelével em sua memória. Cada um deles a deixou envaidecida e feliz. Mas ela nunca deu nenhum sinal, nem olhar pra ele conseguia. Estava imobilizada em sua timidez.

Sentindo uma imensa tristeza em seu coração por seu falecimento ela pensa quase em voz alta: “Por que eu não agi diferente, por que não lhe dei nenhum sinal de que o que eu mais queria era estar com você, abraçar, beijar. Por que você não tentou? Por que não ousou e se aproximou de mim? O que lhe impedia? O que me impedia? Queria tanto, ao menos por um dia, ter conversado com você, ter sentido o calor do seu abraço, o sabor do seu beijo. Queria tanto ter, mesmo que por pouco tempo, namorado você, partilhado de sua vida. Queria tanto que, se tivesse dado certo nosso namoro, casar com você, mesmo que tivéssemos nos separado depois, talvez pelo alcoolismo a que você se entregou e que hoje ceifou tão precocemente a sua vida.”

Perdida em seus pensamentos, ela se lembra que quando ele começou a namorar outra, teve vontade de chorar, de demonstrar seus sentimentos, mas se conteve.

Quando soube do noivado dele, teve vontade de correr pra ele e se declarar, mas se fez de indiferente.

Quando ele se casou, teve vontade de chorar, de morrer, mas se conteve.

Quando, durante todos estes anos, ele a encontrava e a olhava de maneira comprometedora, como da primeira vez que a viu, ela tinha vontade de se entregar, mas sempre se conteve.

E hoje, quando teve noticia de seu falecimento, teve vontade de expressar toda a sua tristeza, todo o sentimento que nunca expressou, mas está ali inerte, fria. Nem uma lágrima rolou em seus olhos.

Ela faz uma oração por ele em silêncio.

Ela sabe que tudo isto é só uma lembrança remota.

Cada um seguiu sua vida. Ele se casou, teve seu lar, seus filhos. Ela nunca soube se foi feliz ou não. Mas sua esposa esteve com ele até o final, cuidando dele.

Ela também se casou, tocou sua vida pra frente e este amor platônico nunca atrapalhou. Sempre foi só uma lembrança guardada lá no fundo da alma. Mas hoje, sabendo que ele está morto, uma tristeza abate seu espírito. Tristeza porque amanhã ele estará sepultado e estas lembranças estarão novamente guardadas, sepultadas no fundo de sua alma. E ela nunca saberá se o que não viveu seria melhor do que o que é sua vida.

Ela se levanta e sem derramar nenhuma lágrima por ele segue a rotina de sua vida.

Faz o que tem que fazer, depois se deita ao lado do marido.

Amanhã sua vida seguirá em frente como se nada houvesse acontecido. Segue com seu casamento morno, seu trabalho enfadonho, sua vida comum, sua rotina interminável. Mas no fundo sonha em um dia jogar tudo para o alto, mudar sua vida, tentar ser feliz, começar de novo e viver uma vida mais imprevisível.

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 23/12/2020
Reeditado em 24/12/2020
Código do texto: T7142748
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