MESMO EM TEMPOS DE PANDEMIA, FELIZ NATAL!

Natal em Nova York. A neve caindo. As crianças brincando no Central Park. Um cenário de cartão postal. Era tudo que Isis sonhara. Era jornalista correspondente de um canal de tevê. Uma carreira de sucesso. Os prêmios na estante do apartamento na quinta avenida. As fotos com celebridades. As revistas na mesa de centro. O notebook. A agitação, o glamour da cidade, as peças na Broadway, os passeios, os táxis amarelos, as várias etnias da população, os restaurantes, a estátua da liberdade, tudo isso a encantara, há quatro anos. A pandemia do Covid-19 quebrou o encanto da moça de Uberlândia pela Big Apple, como chamam Nova York. Ela preparou a tradicional tapioca para o café da manhã. -"Sim, 2020 será um ano pra ser esquecido! Não esqueceremos, Gordon!" Ela conversou com o gato. A foto de Gregory no porta retrato. O namorado de trinta e três anos havia partido em abril. Era hipertenso e contraiu Coronavírus num churrasco. Isis queria retornar ao Brasil mas não pode. Tinha que cobrir as eleições americanas. Trump versus Biden. Uma agenda cheia de compromissos e viagens pelo país. Ela já estava esgotada com as reportagens sobre a morte de George Floyd. Os protestos nos estados. Em Lansing, Michigan, em novembro, precisou ser medicada. Estava muito fraca e abatida. Uma semana de atestado médico. O trabalho a distância. Ela não parava. As lives, as matérias na internet. A notícia que o pai tinha falecido a fez perder o chão. Ela não podia viajar. Não pode se despedir do pai. O velho Deodato, de oitenta anos e hipertenso, foi vencido pelo Covid-19. Em memória dele, ela armou a árvore de natal. A lembrança da família numerosa em volta da mesa. A troca de presentes. A bagunça das crianças. As rabanadas. O pudim de pão da mãe. A visita dos parentes. Quanta saudade. Muita coisa tinha mudado. O mundo estava mudado. Ela tinha mudado. Um telefonema de um amigo de Londres. George era modelo. Pedia conselhos sobre moda. Mensagens no celular. Gente pedindo informações variadas. Ela desligou a tevê. A ração colocada pro gato. Os rascunhos e o projeto engavetado de um livro. Ela colocou o casaco e o gorro. Os três celulares nos bolsos. O walkman. As luvas. Precisava caminhar um pouco. Ver pessoas. Viver. Lembrou e voltou pra pegar a máscara. Compraria donuts na volta. Um papai Noel na esquina, tocando um sino. -"Ho,ho,ho. Feliz natal, moça." Ele conseguiu arrancar um sorriso dela. Tinha verdadeira paixão pelo bom velhinho na sua infância. Andou por várias quadras e não viu mais nenhum papai Noel. Sinal dos tempos de pandemia. -"Papai Noel é do grupo de risco. Todos somos grupo de risco." As músicas natalinas num carro de som. As ruas quase desertas. -"Nem parece que é natal." Ficou horas num banco da praça, ouvido música. Há tempos não fazia isso. O telefone tocou. Aline, guia turística natural de Salvador, a convidava para o almoço de natal. -"Você não pode passar o natal sozinha!" Ela não estava a fim. -" Estarei bem. Tenho maionese e restos de um peru na geladeira. Obrigado por lembrar." O apartamento. O pote de álcool gel no aparador. O gato dormia o sono dos justos, ou melhor, dos felinos. -"Queria dormir até acordar, como diz o Boccardi." As notícias. A morte do Paulinho, do Roupa Nova. A segunda onda do Covid na Europa. A perda da Nicete Bruno. A vacina da China. A vacina da Pfizer. A Coronavac. Um banho quente. Deu graças pela água. -"Gratidão por tudo. Tudo tão caro. Nunca estivemos tão frágeis!" Disse em voz alta. Ela resolveu ler um pouco. Um romance de Nora Roberts. A caneca de chocolate quente no criado mudo. O edredom macio. As almofadas. As felicitações de natal no celular. Resolveu desligar dois celulares. -" Esse da tevê tem que ficar ligado. Vai que pinta uma exclusiva, uma emergência ou fato fantástico? Esse ano está tão atípico que tudo é possível." Adormeceu no segundo capítulo. O gato entrou no quarto e se aninhou a seus pés. Era noite quando Isis despertou. Dormiu a tarde toda. O estômago roncou. Ligou e checou os celulares. A tevê ligada. Nada mais lindo que a noite de natal em Nova York. Não queria ir para a Times Square. Não queria muvuca e aglomeração. -" Nada me apetece na geladeira. Gosto dessa palavra que vi num conto do Marcos, no Recanto das Letras. Meu reino por um estrogonofe!" Esquecera dos donuts. A campainha tocou. Ela espiou pelo olho mágico. Ela abriu a porta. Um rapaz de máscara. Segurou o riso ao ver o casaco do rapaz de óculos de fundo de garrafa. -"Boa noite. Sou Eduardo. Sou o novo morador do 712." Ele estava vermelho de vergonha. As mãos trêmulas. -"Boa noite. Sei, o apê da frente." Foi curta e grossa. Ele gaguejou. -"Tá...tá bom. É que, conheço você da tevê. Mora só você e o gato. Me perdoe, vi você chegando. É natal. Eu fiz o jantar só pra mim e... bem. Quer jantar comigo?" Ela reconheceu o sotaque mineiro dele. Eles se cumprimentaram com os cotovelos. -"Eu vou aceitar, Eduardo. Tenho vinho tinto gelado." Ele ergueu as mãos. -"Ótimo. Cairá perfeitamente com estrogonofe de frango." Ela pediu licença e foi até a cozinha. -"Será que essa é a magia do natal? Esse cara leu meu pensamento!" Voltou com o vinho, a tempo de ver seu gato nos braços do vizinho. -" Ele gostou de mim. Tenho uma gatinha, a Penélope!" Ela e o gato no apartamento dele. Gordon e Penélope juntos. Algumas caixas no chão. Um sofá coberto com uma lona. -"Não repare a bagunça. Sou de Alfenas e dentista há sete anos. A cozinha está mais arrumadinha que a sala. Veja, os bichanos já estão se dando bem. A Penélope gostou do gordo. Gordon! Acho que vai dar namoro." Ele tirou a máscara. Isis ficou paralisada com aquele sorriso abaixo dos olhos verdes. -"Vou montar a mesa. Tenho queijo da serra da Canastra, se quiser pode ir beliscando." Ela quase se beliscou, achando que aquilo não era real. Ele a fazia rir. Ela sentiu o coração acelerado. -" Há tempos não como queijo da Canastra!" Eles conversaram por um bom tempo, após o jantar. -"Eu tenho que ir. O trânsito, congestionamento, sabe? Obrigado pelo jantar. Digno de um master chefe!" Disse ela, com o gato a tiracolo. -"Trânsito!? Só seis passos até sua porta. Entendi, cuidado ao dirigir. Eu que agradeço a sua presença." Isis pousou a mão no braço dele. -" Conheço a cidade toda. Estou a sua disposição! Boa noite. Feliz natal." Ele se assustou. -" Vixe. É mesmo, uai. Até esqueci que era natal. Feliz natal pra você." Ela sorriu. Isis se virou e logo entrou em casa. O gato ficou arranhando a porta. -"Não acredito que falei aquilo. Estou a sua disposição. Que idiota, Isis." O gato foi até a sacada. Dava pra ver Penélope, na sacada vizinha. Ele mediu a distância. Não dava pra pular. Havia a tela de proteção. Ao menos podia ver a gatinha. Isis riu da cena. -" Ainda que em tempos de pandemia, feliz natal." FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 23/12/2020
Reeditado em 23/12/2020
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