As botas
Trecho de viagem ao Chile em 1977
04.08.2018
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A viagem já ia quase ao seu meio para o fim; estavam bem mais ao sul no país. Novidades, imprevistos da sorte, sempre com novas emoções que aconteciam dia a dia. Estava valendo a pena. O amigo, que o desafiara a gastar somente aquela quantia acertada no início, de cerca de quinhentos dólares, não acreditava que se confirmava. Valendo a pena sim!
Deixaram a cidadezinha de onde enviaram o "bendito telegrama" sobre o jogo de basquete e estavam novamente à beira da estrada no aguardo de quem lhes desse carona. Viam dela o majestoso vulcão "Osorno" dominando a paisagem do alto da cordilheira gelada e branca, que se afunilava mais e mais junto à planície costeira, formando quase que um corredor, tendo a estrada a cruzá-la. Bonito; o Chile é um lindo país!
Poucos carros passavam. Era cedo, de manhã, uma fina neblina descia como cortina fria e úmida impedindo a visão. Tudo era opaco, sem cor ou emoção. Tristeza. Ele em pé esperando ouvir o som de algum veículo; o amigo sentado no acostamento aguardava placidamente. O passar de carros era muito espaçado, o tempo seguia seu curso, o que lhes preocupava, pois, era situação que agora se mantinha mais frequente nesse trecho da viagem, fazendo com que percorressem pequenas distâncias com maior tempo gasto.
Surge ao longe um par de luzes, faróis amarelados, vindos em sua direção, era um carro. Vem e para ao seu lado com motorista sozinho na camioneta de caçamba longa.
- Buenos dias? - diz.
- Buenos dias. - responde ao motorista.
- Donde van?
- Puerto Montt.
- Si, está cerca. Mi compañero está en el otro coche y llevará a su amigo.
E nisso, vem chegando através da bruma fina a outra camionete. Sobem nos carros e seguem viagem, aliviados. Eram novas elas, sabia-se pelo seu cheiro característico de carro novo. Foram conversando ele e o primeiro motorista. Era engenheiro agrônomo, sem trabalho na sua área e com o amigo, "compañero" guiando a outra, faziam esse trabalho de transporte de carros de Valparaiso até Punta Arenas, no extremo sul do país, para poderem sobreviver. Era difícil a situação que passavam os chilenos naquela época.
Pararam em Puerto Varas para abastecer, descansar e comer. Cidadezinha à beira de um lindo lago de águas calmas e escuras, "Llanquihue", seu nome, com o eterno vulcão no sopé dele, que os acompanhava. Bucólica era a vila que chamou a atenção dos amigos viajantes.
Via-se que fora colonizada pelos alemães fugidos da guerra, "ex-nazistas" como se sabia, com suas casas de telhados em ângulos, paredes de pedras aparentes, lindos jardins floridos com gramados e floreiras de madeira com flores coloridas em suas janelonas com a as típicas cortinas brancas rendadas emoldurando-as. E era muito próxima de Porto Montt. Gostaram do lugar e ficaram por ali. Os dois chilenos seguiram sua longa viagem.
Passearam pela via ao longo do lago, dia ensolarado, as cores realçadas e fortes, deixando-os em estado de lassidão. Deitaram no gramado e se deixaram levar pelo nada a fazer, só sentir, o barulho da leve brisa acariciante, os cheiros diferentes que não conheciam; tudo novo!
- Muito bom, não? - diz ao amigo deitado ao seu lado de olhos fechados e sorriso feliz e tranquilo no rosto.
- Sim, maravilhoso!
- Vamos arrumar um lugar para ficarmos aqui, quem sabe à beira do lago, não?
- Claro, vamos achar sim. Uma casa de alemães!
Saíram daquela situação catártica para a aglomeração de casas que não eram muitas, a procura de pensão. Perguntaram para alguns chilenos locais, mas estes eram de cabelos loiros, olhos claros, azuis na sua maioria, altos, nada de "mapuches" como os da terra. Os germânicos dominavam ali. Receberam indicação de um local próximo. Chegaram, era em uma esquina, casa estreita e comprida, dois andares, o de baixo em pedra, o de cima em madeira, como queria o amigo: de alemães, claro! Batem na porta da entrada. Ela se abre depois de um tempo e aparece senhora alta, cabelos grisalhos, olhos azuis firmes e duros; forte. Uma perfeita "frau". Os olhou de cima a baixo - seguiam ainda com suas roupas puídas, cabeludos e barbudos, perfeitos mendigos. Mas eram altos, cabelos castanhos, olhos claros - os do amigo azuis cristalinos, mais parecendo da mesma descendência que a dela, o que fez com que não lhes batesse a porta na cara.
- Si?
- Tiene habitaciones?
- Si!
- Es posible ver?
- Si! - de pouquíssimas palavras a "frau", com a típica hospitalidade germânica de sempre!
Entraram pelo corredor em piso de madeira grossa, chegaram na sala com janelões de madeira pesada também, altos, envidraçados, arejada e clara, limpa e arrumada metodicamente, a sala. Uma grande lareira, toda em pedra, fumegava com seu som estralado no canto dela. Morava ali a "frau" e alugava os quartos.
Seguiram até a sua "habitacion", quarto grande sem banheiro, que ficava ao final do corredor como era nas casas antigas, espaçoso, com duas camas grandes e a mesma janelona com vista do lago, de cortinas brancas rendadas. Aconchegante!
"- Bamos a ficar com la habitacion!" - no seu portunhol característico, disse para a "frau".
- Bueno. Tienes que dejar las botas fuera en el pasillo, seguro!- falou com autoridade!
- Si, seguro. - respondeu ele.
Instalaram-se no quarto e foram andar pela vila e ao redor do lago, com o enorme e imponente vulcão silencioso, observando-os como sempre. Conversaram com outros "germano-chilenos" que lhes disseram para irem conhecer Puerto Montt, o mercado de peixe com sua diversificada variedade de frutos do mar. Era perto, de ônibus cerca de meia hora. Foram até a rodoviária, que não era mais do que um grande estacionamento de pedregulho com os guichês das empresas, duas, vendendo passagens. Compraram para o dia seguinte. Não iriam de carona por ser muito perto.
Início da noite, céu limpo e as estrelas aparecendo, quando surgiu a lua enorme, avermelhada, cheia, iluminando o lago e a cidade. Linda visão, com a sua cauda prateada refletida nas águas calmas e serenas do lago. Que paisagem!
Chegaram de volta à pensão e ao quarto. Deixaram as botas fora como solicitado, mas para ir ao banheiro teriam que calçá-las, pois não tinham sandálias ou chinelos. Tomaram banho e jantaram sopa quente e forte com pão caseiro, deliciosa, ao som da lareira crepitando. "Frau" não compartilhou da refeição com eles. Eram os únicos hóspedes e mesmo assim ficou na cozinha, quieta.
Acordaram cedo no dia seguinte, ele se levantou para ir ao banheiro, abriu a porta e não viu as botas!
- Onde estão nossas botas? - perguntou a si e ao amigo, deitado ainda.
- O quê? - questiona se espreguiçando sonolento na cama.
- Não estão aqui na porta como deixamos ontem! Será que roubaram?
- Não pode ser. A "lemoa" deve ter colocado em outro lugar. O chulé deve tá brabo, né! - disse o "espreguicento" rindo gostoso.
Seguiu ele pelo corredor e viu no beiral da janelona semiaberta à frente, os dois pares das "cheirosas".
- Caramba! Devem estar mesmo fedendo - falou para si, pegando-as. Cheirou as botas e estavam com "chulé" danado, e com razão, ela as colocara ali!
- Achei! - gritou ele para o amigo deitado. Voltou com elas para o quarto.
- Ela deve ter colocado lá, tão fedendo muito, a gente não percebe né, já nos acostumamos com o nosso "cheirinho"! - Riram os dois.
Café da manhã posto e vem a "frau" agora sorridente com o bule de café, dando a entender que fora ela que as colocara na janela, pelo seu cheiro insuportável. Sua vingança.
Saíram em direção a "estación de autobús" e aguardaram a chegada do ônibus. Chega ele, um velho Mercedes Bens dos anos 50, alemão é claro, apertado, bancos baixos, porta única na frente "escamoteável", que abria e fechava pela ação manual do motorista por uma manivela. Voltaram no tempo.
Subiram, sentaram apertadinhos, cheio de "germanos-chilenos, era pinga-pinga - parava em qualquer lugar na estrada para pegar passageiros, mas ainda não estava cheio. Partiu o "bus" lentamente na calma mastodôntica dos chilenos, sem qualquer pressa, possibilitando curtir a paisagem, que agora era retilínea com a estrada acompanhando a costa.
Em Puerto Montt, conheceram a cidade portuária com seu mercado famoso junto ao cais, andaram por dentro dele, em várias tendas onde se vendiam todos os tipos de frutos do mar e as famosas "centollas"- caranguejos vermelhos enormes do mar antártico, com seu grupo de pernas mais parecendo uma aranha gigante.
Pararam numa "tienda" com pratos fumegantes de sopa, caldo de frutos do mar, cheiroso e apetitoso. Sentaram e a tomaram com uma bela "botella" de vinho da casa e "pan" - comeram e beberam com prazer.
Voltaram no mesmo "onibusinho" onde se falava mais alemão que castelhano - uma interação de raças tranquila ocorria ali.
A noite caíra cedo e novamente o enorme círculo no céu, agora mais prata, refletia a sua luz nas águas calmas e sonolentas do lago, tendo sempre aos seus pés o vulcão vigilante. Paisagem maravilhosa que ainda hoje lhes vem à memória!
Teriam ainda mais algum tempo naquele belo país que tanto os encantava, com seu povo sofrido, mas altivo e perseverante, hospitaleiro, simples. Admiravam eles, os amigos "caroneiros", já sentindo certa nostalgia e saudades de todas as ricas experiências que passaram até ali. Engrandecedora era a palavra.
Mas, teriam que seguir seu roteiro, pois a viagem continuaria com expectativas de novas aventuras inesperadas e inesquecíveis, certamente.
E claro, as "botas cheirosas" estariam presentes!
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