Conto das terças-feiras - Daí a Cesar o que é de Cesar

Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 22 de dezembro de 2020.

Um dos fatos históricos mais comentados durante a copa do Mundo da FIFA de 1986 foi o gol de mão do Diego Maradona, da Seleção Argentina contra a Inglaterra, jogo válido pelas quartas-de-final daquele ano, e realizado no Estádio Azteca, na Cidade do México. Esse gol foi validado pelo árbitro tunisiano Ali Bin Nasser, o que deixou bastante irritado todo o time inglês. Ao término da partida, aos jornalistas, Diego Marado pronunciou a célebre frase: “Lo marqué un poco con la cabeza y un poco con la mano de Dios”. Satisfeito por ter ganhado a partida por 2x1, Dieguito cunhou outra célebre frase: “O gol' foi uma sensação agradável, como uma espécie de vingança simbólica contra os ingleses". Referia-se, assim, por conta da Guerra das Malvinas, perdida pelos argentinos.

Mexendo em minhas memórias, fui transportado ao ano de 1959, eu, com 15 anos de idade, na fazenda de propriedade do Dr. José Turíbio de Souza, assistindo ao Jurema Futebol Clube, seu time, jogar contra um time visitante.

O Dr. Turíbio, como era mais conhecido, jogara pelo Fortaleza na década de 1920, e era aficionado pelo futebol. Mantinha em sua fazendo um campo, cujas dimensões aproximavam-se aos campos profissionais. Todos os domingos ele pagava para times jogarem em seu campo, contra o seu time. Os jogadores visitantes chegavam em ônibus ou pau-de-arara, meio de transporte irregular, que consiste em se adaptar caminhões para o transporte de passageiros, ainda hoje muito utilizado no Nordeste do Brasil.

Acompanhando alguns jogadores vinham familiares, amigos, e até aficionados por futebol, que não tinham acesso aos jogos dos clubes da elite, realizados nos estádios oficiais. Próximo ao campo eram vendidas bebidas não alcoólicas, sucos, picolés, milho verde, frutas, tapioca, churrasco com pão e farofa. Não havia briga, só confraternização, um domingo alegre e saudável. Os jogadores descalços corriam atrás da bola sobre um chão duro e algumas manchas de gramado. Não havia pedras, pois essas eram caçadas na véspera do jogo, para evitar que alguém saísse machucado. As marcas do campo eram feitas com cal, que permaneciam vivas até o final do jogo, se não chovesse, coisa rara por aquelas bandas.

O problema era a escolha do juiz, o apitador da partida. Poucos daqueles sabiam das regras, nem mesmo alguns jogadores. O Dr. Turíbio não aceitava que os visitantes trouxessem um juiz, ele teria que ser apontado entre os convidados do dono do campo.

Não que tivesse a intensão de fraudar a partida, o homem era bastante honesto, não admitia roubo. Era o que ele passava para o árbitro de cada jogo.

Infelizmente não foi possível encontrar essa pessoa, naquele domingo não havia visitante dele. A solução encontrada foi escalar o meu irmão, o Bil, que gostava de futebol, conhecia algumas regras, pois estava acostumado a jogar com os filhos do dono da fazenda. Eram peladas realizadas sempre aos sábados, em férias escolares, quando nos dirigíamos para aquele agradável local, em recompensa ao longo período que havíamos passado estudando. Fazia parte desse time, o Bil, quatro filhos da casa, três dos quais jogavam no Jurema Futebol Clube, e mais alguns trabalhadores da fazenda.

O Bil foi chamado à responsabilidade de apitar um jogo que parecia fácil, pois o visitante já havia jogado algumas vezes naquele local, e nada de extraordinário acontecera. O menino, de apenas 14 anos, entrou orgulhoso no campo, com bola e apito. Chamou os capitães ao centro da arena e falou:

— Aqui não admitimos jogo desleal, não tolerarei indisciplina, quero jogo limpo!

— Sim, senhor! - responderam os dois capitães

O juiz tirou a sorte para a escolha do lado, colocou a bola no centro do gramado, Ops! – do campo de barro e o jogo teve início. Não havia filmagem, VAR, replay, ou coisa parecida. Primeiro tempo sem incidente, partida empatada 0x0. Bil, confiante, deu início ao segundo. Já terminando a partida, seis minutos para o final, 0x0, um jogador da casa, Manoelzinho fez um gol de mão, ninguém viu, só o goleiro visitante, o árbitro também não, mas apitou e apontou para o centro do campo, validando o gol. Manoelzinho tinha apenas 1,40 m, era bom jogador com os pés, não com as mãos. Imediatamente, prevendo confusão, procurou se esconder em casa. Todos correram para cima do Bil que, encurralado, corria e gritava: por favor, segurem eles, SOCORRO! Não alcançaram o garoto, era bom atleta, que se embrenhara nos laranjais e cajueiros, só aparecendo quando teve certeza de que o pau-de-arara dos visitantes havia deixado o local.

Sem árbitro, a partida foi encerrada, o jogo terminou em 1x0 para o Jurema Futebol Clube, apesar dos protestos dos torcedores do time visitante que, logo depois, tomaram o rumo de suas casas, no velho pau-de-arara, todos tristes, não pela confusão, mas por terem perdido mais uma. Algum tempo depois Manoelzinho afiançou que Deus o ajudara naquele gol de mão, Ele guiara minha mão em direção ao gol.

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Nota do autor - A antiga fazenda Jurema, em Caucaia, do Dr. José Tibúrcio de Souza, deu lugar a um conglomerado de conjuntos habitacionais.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 22/12/2020
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