1151-A SORTE GRANDE -

Cidadão respeitado na pequena cidade de Vento Leve,

Rotariano e membro da maçonaria, marido amado pela esposa e filhos, profissional competente no tratamento e extração de dentes, o doutor Genivaldo parecia ser o exemplo ideal a ser seguido por quem quer que seja

Nunca fumara, não bebia senão um copo de vinho em recepções ou encontros festivos e comemorativos – não tenha vícios.

Bem situado financeiramente, era um filantropo da primeira linha, que contribuía com donativos às todas entidades que lhe solicitavam auxílio.

Poderia ser uma pessoa cem por cento equilibrada, não fosse um desejo forte, eu diria, obcecante, por ganhar o grande prêmio da Loteria Federal, que o tornaria milionário da noite para o dia.

Não era, portanto, por premência econômica que sonhava com a sorte grande.

Seria como que uma mania que o levava a comprar, todas as quartas-feiras e sábados, um bilhete inteiro, sistematicamente nas vésperas daqueles dias.

Não incomodava ninguém com sua incontrolável mania. Apenas sua esposa via com certo receio a atitude do marido.

— Cuidado com sua pressão, Valdo. Não vá levar um susto grande aí com essa vontade de ganhar na loteria.

Tinha razão dona Marta, pois a pressão do marido estava subindo nos últimos meses. Claro, ele a mantinha sob controle com medicamentos, mas realmente havia, sim, como sempre há, nesses casos, alto risco com notícias de grandes surpresas, sejam boas, sejam ruins.

— Que é isso, Marta? Pare de se preocupar, não vai acontecer nada de mais no dia que eu ganhar a sorte grande.

Tamanha era a ansiedade em adquirir os bilhetes que mantinha um acordo com o cambista Mizael Fortuna, assim chamado por já ter vendido na cidade dois bilhetes premiados com a sorte grande.

Pelo combinado, Mizael deveria trazer ao dentista, na véspera dos sorteios, os bilhetes para ele escolher o número (nunca era o mesmo); e competia também a Mizael avisar o doutor Genival do resultado do sorteio, nas noites de quarta ou sábado, em que “corria a loteria”.

Mizael tinha uma motocicleta antiga, barulhenta como só ela, cujo matraquear antecipava a sua chegada. Portanto, era uma rotina à qual o dentista estava acostumado: pelas cinco e meia da tarde, o cambista chegava ao consultório, precedido pelo pipocar ensurdecedor de sua moto, e entregava ao doutor Genivaldo a lista dos cinco números sorteados às dezesseis horas, na capital federal.

O doutor Genivaldo, que já havia dispensado o último cliente, aguardava somente a chegada de Mizael para receber a lista, fechar o consultório e ir para casa.

— Então, Mizael¿

— Ainda não foi desta vez, doutor.

O doutor recebia a pequena lista, manuscrita pelo cambista, conferia e verificava que, realmente, ainda tinha sido aquela vez.

O doutor nunca ganhara sequer um dos prêmios inferiores, chamados de “segundo ao quinto”. Mas jamais deixara transparecer sua decepção, se é que tinha alguma.

Sexta-feira, 24 de dezembro. Naquele dia corria a Loteria de Natal, com o primeiro prêmio duplicado de valor. Por mais que tentasse esconder, o dentista estava mesmo ansioso.

São dez milhões! Desta vez, ou vai ou racha!

Como não tinha nenhum cliente para o dia (pois na véspera de Natal ninguém tinha dor de dentes), o dentista foi o consultório às cinco da tarde apenas para esperar Mizael, que, com toda a certeza, viria com a boa notícia.

A boa, não! A ótima notícia, A extraordinária...

Passava os minutos andando entre o pequeno recinto do consultório e a sala de espera.

Depois de tantos anos jogando, é justo que hoje eu ganhe este prémio dobrado. É hoje! É hoje!

A ansiedade tornara-se obsessão; olhava para o relógio, acompanhava o passar dos segundos.

Cinco e quinze e ouviu, ao longe, o inconfundível barulho da motoca de Mizael.

Virgem Santa! É ele. Tá adiantado quinze minutos. De certo que ganhei e ele vem mais depressa pra me dar a notícia.

Abre a porta do consultório. Vê Mizael encostando a moto, cujo barulho expira enquanto o motoqueiro, ágil, corre em direção ao dentista. A mão esquerda apertando a bochecha.

— Ai, ai, ai, doutor!

— Então, Mizael? Ganhei o primeiro prêmio.

— Ai, ai, doutor, vim mais cedo porque estou com uma puta duma dor de dente e...

— E a Loteria¿ Ganhei ?

— Ai, ai! — Geme Mizael, adentrando pelo consultório e sentando-se na cadeira de dentista.

— O PRÊMIO, MIZAEL! GANHEI A SORTE GRANDE¿ — o dentista grita com o cambista o rosto vermelho e as mãos agitando-se descontroladamente.

— Ai, Ai, doutor! Meu dente...Não, doutor, ainda não foi desta vez! Ai...

O Doutor Genivaldo desaba sobre Mizael. Com dificuldade, o motoqueiro consegue sair da cadeira e tenta levantar o doutor.

O dentista cai ao chão. Com os olhos fixos e a boca aberta num rictus mortal.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Sitio Estrela, Sopé da Serra da Moeda, Minas Gerais.

10 de junho de 2020

Conto # 1151 da série

INFINITAS HISTÓRIAS.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 20/12/2020
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