O telegrama

Trecho de viagem que fiz com amigo ao Chile em 1977.

31.07.2018

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Estavam felizes os dois amigos. No dia seguinte ao da vitória do Brasil sobre a Argentina no Campeonato Sul Americano de Basquete em Valdívia, curtiam os momentos passados na quadra. Inesquecíveis!

Mas, seguiriam sua viagem e resolveram conhecer a cidade de Corral, arrasada por um "tsunami" em 1960, ponto turístico da região de Valdivia.

Teriam que pegar um barco até lá, uma ilha, no rio de mesmo nome da cidade que a cruzava, Valdívia. Foram até o cais. Começam a conversar com o barqueiro em seu"portunhol" característico.

- Brasileño, si? - pergunta.

- Si, somos - responde ele.

- Felicitaciones pela victoria sobre los argentinos! No me gustam. Suban sin pagar. Si fueram argentinos pagarían el doble! - completa ele rindo com prazer.

- Muchas gracias - responde.

Sobem no barco, sentam-se ao lado de um casal chileno que escutou toda a conversa do barqueiro e começa a viagem pelo rio, iniciam conversa sobre o dia anterior e das suas peripécias na quadra. Estavam curiosos.

Chegaram, desceram e começaram a caminhar pela cidade ainda em ruinas, muitas casas no estado da tragédia, outras reconstruídas. Passearam pelas ruas e subiram um morro suave onde se podia avistar toda a grandeza do Pacifico, nada pacífico, com a sua imensidão azul. Ele estava calmo, tranquilo e as praias da ilha eram bem abrigadas, nunca se imaginaria que poderiam ser devastadas por maremoto da forma como ocorreu. As ruínas ali eram o testemunho da tragédia.

Tinham obtido na pensão em que estavam alojados, um endereço de restaurante de frutos do mar muito bom, e foram para lá, descendo da vista panorâmica que tinham.

O restaurante era em casa antiga que enfrentara a tormenta, em esquina acolhedora. Fumaça saia da chaminé com aquele cheiro delicioso de madeira queimando. Entraram, ambiente familiar, quente - apesar de ser verão, era janeiro, o sul do chile é fresco e junto ao mar a umidade aumenta a sensação de friagem - a lareira em brasas aconchegava.

Olharam ao redor e viram junto ao janelão no fundo da sala o casal do barco, que os chamou para sentarem com eles. A enorme hospitalidade chilena de sempre, irrecusável. Sentaram e continuaram a conversa. Os chilenos estavam curiosíssimos sobre como dois brasileiros sozinhos viajavam de carona pelo Chile em plena ditadura militar, pois muitos eram presos e sumiam. Para eles, era façanha inacreditável. Para os dois amigos, uma aventura de jovens adolescentes querendo conhecer pessoas, culturas, nada mais!

O almoço foi delicioso, o casal lhes indicou a sopa de peixe com caranguejo, frutos do mar e claro, o belíssimo vinho chileno. Foi uma grande comemoração: O "Viva Brasil" ecoava na sala de poucas mesas, mas de chilenos simpáticos e calorosos. Fizeram questão de nos pagar o almoço. Voltaram juntos no mesmo barco ao final do dia.

No dia seguinte, cedinho, pé na estrada, ou uma avenida cruzando a cidade. Ficaram na beira dela, aguardando quem lhes levasse para novas aventuras. Trânsito fraco, poucos carros. Não paravam os que passavam, talvez por estarem os dois com suas roupas puídas, barbudos e cabeludos, mais parecendo dois "hippies", amedrontando os motoristas. Tempo passando, dia correndo, já quase na sua metade e eles a espera.

Vem então caminhão tanque só com o motorista , que para:

- A donde van? - pergunta ele, sorrindo amistoso.

- Para el sur, Osorno. - responde

- Suban.

- Gracias, muchas gracias! - respondem

Subiram na cabine, ele no meio, mais falante; o amigo, mais quieto, na janela. Era caminhão de leite que coletava nas fazendas e sítios a produção e levava para laticínio em cidade perto, antes de Osorno. A estrada era sinuosa e com elevações, cercada pela cordilheira andina com seus topos brancos, uma muralha natural, planícies ao longo da costa verdejantes, cortadas por floresta de pinheiros, uma paisagem europeia parecia, que lhes acalmava, ainda mais pela baixa velocidade do caminhão, dando condições de se admirar todo esse cenário. Lindo país, o Chile!

Pararam em fruteira junto à estrada, com pêssegos, maçãs e melões enormes e maravilhosos.

Estavam com fome, meio da tarde, os dois somente com o "desayuno". O motorista fez questão que comessem "los mejores duraznos del mundo". E realmente eram, enormes, carnudos, cheios de sumo doce. Também, o famoso melão chileno, inigualável, mais parecendo uma melancia de tanto suco que tinha. Fartaram-se, com o motorista orgulhoso de mostrar as qualidades de seu país. Pagou-lhes as frutas. Os chilenos de sempre.

A viagem seguia e a conversa claro, sobre o campeonato sul americano de basquete vencido pelo Brasil, foi quando os amigos lembraram que deveriam enviar telegrama para avisar aos amigos no Brasil, que no sábado seguinte passaria na tevê o jogo, e eles, consequentemente apareceriam junto com o time fazendo a volta olímpica, o cartaz de o "Brasil é du Caral..".

- Donde podemos enviar telegrama para Brasil?

- Bueno, estamos cerca de la ciudad que tiene telégrafo. Alrededor de 20 minutos. - responde o motorista.

- Vamos nos quedar aja, entonces, es posible?

- Si claro; pero por el horario avanzado puede estar cerrado.

- Vamos a tentar. - diz ele.

Chegam à cidadezinha, um vilarejo, com o correio à beira da estrada em uma casinha toda em madeira. Aberto! Agradeceram a carona, as frutas e a hospitalidade, descem correndo entrando na agência. Pequena sala, balcão onde sentado lhes encara com olhos brilhantes de novidade o telegrafista:

- Lo que quierem?

- Enviar telegrama para Brasil.

- Ah, brasileños, bueno.

- Si, somos.

- Pero, tenemos un problema. El telégrafo está apagado. Solamente mañana.

Começaram a conversar os dois amigos, de como fariam, se esperariam ali e mandariam no dia seguinte, ou seguiriam viagem até cidade maior, mas tinha o "toque de queda", de recolher, poderiam ser presos despois das 20hs.... Seguia a discussão dos dois sob os olhares e ouvidos atentos do senhorzinho: era pequeno, de sorriso simpático, bigodes negros, cabelos lisos e olhos vivos negros - um índio "mapuche", chileno de raiz.

- Donde es el hotel? - pregunta ao telegrafista.

- No tiene hotel en la ciudad!

- No tiene? - questiona chocado olhando para o companheiro - Como vamos fazer agora? Já são quase seis e meia e não temos onde ficar? - Pois é, Delegacia..... responde o outro, sarcástico.

O senhorzinho encantado com a conversa deles e já chegando outras pessoas, crianças, cachorros rondando à entrada, curiosos, um alvoroço na salinha e na vila - souberam da novidade "brasileña" e queriam ver o acontecimento inusitado de perto. Ele lhes diz:

- Si mi permite, pueden quedarse en mi casa! - fala de forma coloquial, dirigindo sua fala a todos na saleta, como sendo os dois estrangeiros um "troféu" que estava agora conquistando, se sentindo melhor que todos ali. Murmúrios e risos contidos se ouviram na saleta cheia. Aguardavam a resposta dos "brasileños"!

Confabularam os dois: - Então, vai ser a solução, não? Amanhã enviamos logo cedo o telegrama e seguimos viagem. O que acha? - Sim, concordo.

- Aceptamos! Muchas gracias!

Todos sorriram e aclamaram a decisão, seriam comtemplados com a estadia de dois ilustres desconhecidos "brasileños" na sua vila. O telegrafista ficou engrandecido de felicidade. Sorria largo.

Seguiram para a casa dele, atravessaram a pracinha da vila e chegaram ao local, em madeira também, muito simples, pobre! Os amigos se entreolharam. Entraram, o chão da entrada era de terra batida, a sala com mesa, 4 cadeiras, geladeira, fogão à lenha, dois quartos, o de casal e dos dois filhos.

Ficaram os amigos compadecidos e surpresos, não imaginavam essa condição.

A mulher e os dois filhos lhes cumprimentaram, eram todos como o senhorzinho, olhos negros vibrantes, cabelos pretos, sorridentes e amistosos.

O telegrafista lhes indicou seu quarto, a cama de casal!

- No señor, vamos a dormir en el suelo! - diz ele indignado.

- No señor, vamos a dormir con los niños! No tiene problema y es una noche, además nos calentamos el cuerpo todos juntos! - lhe diz rindo com a mulher. As crianças os encaram como se fossem de outro mundo com riso tímido.

Viram o quarto delas, uma cama só de solteiro dividida pelos dois filhos. Ficaram estarrecidos! Mas não tinham outra opção a não ser aceitar.

Estava a família feliz demais e não poderiam ir embora. Nada a fazer. Relaxaram os dois.

Fez a mulher um jantar maravilhoso e farto, no fogão à lenha, com vinho e frutas - as crianças comeram muito, eles, os dois amigos, foram comedidos para que sobrasse, pois poderiam não fazer outra refeição assim por um bom tempo, a família do senhorzinho.

Muitas risadas, a conversa solta, alegria e felicidade houve ali naquela noite. Os amigos, felizes por poderem ter dado essa alegria e distração aos anfitriões. Foi sua contribuição. Foram dormir.

Dia seguinte, o bendito telegrama enviado e a despedida. Estavam os chilenos com os olhos marejados e os abraçaram com força e carinho, as crianças pedindo que ficassem mais tempo. Grande emoção sentiram os dois amigos, pelo afeto e hospitalidade natural e pura deles.

Bendito telegrama!

E de novo estavam os dois a caminho de novas e inusitadas emoções, pois viver é assim, emocionante!

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 20/12/2020
Reeditado em 20/12/2020
Código do texto: T7140226
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