As luvas

Homenagem póstuma ao meu grande e querido amigo Ricardo Hanitsch - "Alemão"

04.07.2018

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Voltaria para casa de moto no domingo, dia seguinte. O inverno se iniciava. Separei e preparei a roupa para a viagem e as minhas luvas não eram para o frio, tinha me esquecido desse detalhe. Minhas mãos sofreriam com elas - se expõem mais , pois sairia no início da manhã, fim da madrugada, horário com as temperaturas mais baixas e passaria por região serrana do sul do país, piorando muito essa situação.

Domingo de madrugada levanto, coloco a roupa: casaco, calça, botas e as luvas. Não tinha alternativa e iria ter que enfrentar o frio com elas.

Fui para a estrada, pois motoqueiro não escolhe clima, faça sol, chuva, frio, vamos em frente. O sol ainda não nascera, o dia prometia ser limpo, sem nuvens prenunciando mais frio ainda. Estava já com as mãos enregeladas. Parei para proteger o corpo com a capa e calça de chuva que tenho - de "motoboy", aliviando o gelado no peito. As pernas se esquentavam um pouco com o bafo do motor, mas as mãos sofriam. As colocava de tempos em tempos sobre o pistão quente do motor para amenizar o frio, mas elas continuavam duras. O vento era cortante, gélido. Tinha que seguir em frente até sair o sol e o dia aquecer.

Meio que entorpecido pelo frio e em marcha na estrada vazia, lembrei que tinha em casa um par de luvas de couro, apropriadas para essa situação que ganhei anos atrás de um grande amigo, já falecido infelizmente. O "Alemão"!

Voltei no tempo, quando iniciamos nossa amizade em encontro diário na lanchonete do cursinho , ele bebedor inveterado de "coca-cola", falastrão, alegre e muito brincalhão, alto, tipo de alemão - era filho de pai germânico, e inteligente, era da turma A, a mais importante.

Dávamos muitas risadas juntos com as gozações e brincadeiras que fazíamos e das nossas histórias. Éramos muito parecidos. Ficamos amigos de nos encontrarmos nos fins de semana, ele se enturmou com a da minha da escola, vindo a se casar com uma amiga de classe e que estudava também no cursinho.

Fizemos vestibular para engenharia e fomos para o Nordeste, descendo o Rio São Francisco de barco a vapor, de carona e barraca entre 4 amigos, incluindo ele e eu.

Em Fortaleza soubemos do resultado das provas, eu ansioso para entrar na faculdade e ele convicto de que tinha passado na "Poli" (Escola Politécnica da USP). Fomos até uma banca de jornal que vendia o "Estadão" com a lista - idos de 1974, sem internet, celular e demais tecnologias como hoje - ele alegre e confiante, eu preocupado.

Procuramos e achamos: eu entrara na faculdade, Faap, pulava de alegria; ele não! Estava triste, dizia "...não entrei na Poli....." Mas tinha entrado no Mackenzie e ficou meio que consolado. Ficamos de comemorar!

Fomos os 4 em um boteco de beira de praia, ou melhor um quiosque, e começamos a tomar cerveja e ele só coca, até que o fizemos beber um pouco de cerveja e foi bebendo, bebendo, gostando e depois disso, segundo ele dizia que não bebia, virou viciado, ou alcoólatra de fato, estragando toda a sua vida, separando, perdendo ótimos empregos, amigos, inclusive eu. Uma pena. E sinto um pouco de remorso e tristeza por não ter retomado a amizade antes de sua morte, mas não foi possível. Infelizmente.

Tinha ele nessa época moto, uma Honda CB360, objeto de consumo dos "boys" e vivia de baixo pra cima na cidade com ela, e muitas vezes eu ia na sua garupa, sem capacete, óculos, roupa comum, às vezes de casaco de couro só. Um perigo! Muitos morreram nas quedas por esse fato. Era ótimo piloto e tinha total confiança nele, pois eu também pilotava e sabia como se fazia. Arrojados éramos, pois os carros se jogavam para cima das motos no trânsito, detestavam os motoqueiros, talvez pela fama que se tinha na época pelos filmes americanos de serem baderneiros, arruaceiros e briguentos. Uma briga mesmo era andar de motocicleta naquele tempo.

Viajamos uma vez para o Guarujá - tinha ele apartamento lá e tivemos que ir paramentados no possível da época , capacete emprestado que saía da cabeça com o vento, casaco de couro do irmão dele, calça "lee" e tênis. Se chovesse, tome chuva. Uma aventura. Ele tinha ganhado as luvas de couro, hoje comigo, e as usava nessas ocasiões. Bons tempos que não voltam mais.

Muitos anos depois, quando não tinha mais moto e eu sim, deu-me as luvas agora imprescindíveis pelo frio que passava na viagem que fazia. Um presente que ficará sempre na minha memória do meu querido "Alemão"!

Espero que onde esteja pilote suas motos celestes sem precisar delas, pois as usarei em sua homenagem e se não pudemos nos reconciliar antes da sua ida, ela é e será nosso elo de amizade eterna. Grato pelo presente!

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 17/12/2020
Reeditado em 18/12/2020
Código do texto: T7137684
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