MASSAGEM

Ela está deitada enquanto massageio suas pernas. Sempre foi assim.

Mamãe ia dormir cedo. Nosso quarto era um ao lado do outro. Mas se barulho constante de alguém se mexendo na cama vinha do seu quarto, eu poderia contar nos dedos quantos segundos levariam para ouvi-la dizer:

“Vem dar uma massagem na mãe.”

Eu entrava naquele cômodo, acendia a luz (nem sempre) e tratava de cuidar de suas pernas doloridas.

A vida toda reclamou de dores do joelho para baixo. As batatas tinham que ser apertadas com os dedos e contraídas usando a parte mais macia da palma das minhas mãos. Era fisioterapia para dois. Às vezes ela ficava de bruços para receber esse afago que ameniza os incômodos musculares, tanto da fadiga quanto da idade.

Friccionava com carinho e força. Demorei um tempo para pegar a manha. Hoje tenho prática.

Confesso que era chato e irritante. Relutei em fazer alguns momentos na juventude. Toda a noite ela pedia. Se estava de bom humor, eu fazia. Caso contrário, enrolava em meu quarto até ela dormir.

Mas geralmente eu fazia.

Logo no início, ao tocar com um pouquinho de força suas batatas da perna e seu rosto se desfazia numa careta misturando tensão e alívio:

“Isso... Uuiii! É que eu fiquei o dia inteiro em pé...”.

Sempre justificava. Na verdade, não havia necessidade de justificar, mas era um jeito de me motivar. Por piedade e empatia. Se fosse eu no lugar dela? Imagine trabalhar em pé sem um momento para sentar como numa linha de produção. Calmamente massageava aquelas panturrilhas em que as varizes apareciam. Era possível sentir as veias pulsando sangue e dor para suas articulações e como era necessário estimular a circulação daquele lugar de seu corpo.

“Agora nas canelas, filho. As canelinhas secas”.

Mentira dela. Jamais foram secas. Emagreceram por uma quase depressão que a atingiu ocasionada pelos muitos baques emocionais que suportara. Divórcio, perda de familiares, salário injusto, patrões imbecis e recorrentes sufocos financeiros. Ainda assim, aguentava ir comigo ao supermercado e trazer várias sacolas de compras. Nunca foram secas. Não tanto.

Lembro que na parte das canelas tinha que deslizar a palma em direção ao joelho e vir descendo, pressionando um pouco com os dedos, principalmente a ponta deles. Não poderia ser feito com uma mão. Tinha de ser com as duas. Movimentos simultâneos e repetidos. Organizados como se moldasse um vaso. Para cima e para baixo.

“Ai... as canelas doem muito...”.

E era nítido. Os ossos pareciam deslocar-se do músculo.

“Quer que eu coloque um creme para ficar mais fácil, mãe?”

Ela recusava dizendo que sujava o forro e detestava o cheiro forte que aquela coisa verde exalava. Na ocasião me questionava porque, então, aquilo estava ali.

“Faz nos pés, filho. Nos pés doem mais.”

É a parte que faço agora. Do mesmo jeito. Aperto aqui e ali. Com mais calma. Quando posso dou um beijinho e faço umas cócegas.

Ah! Os pés. Tão duros e tensos. Recordo que nessa parte não importava como eu faria, desde que apertasse com movimentos circulares. Os polegares trabalhavam na sola e os outros quatro dedos no peito do pé. Inchado, cheio de veias. A parte macia da minha mão seria para envolver as áreas que mais doíam. Os calcanhares e os joanetes que, por causa das botas que ela usava para trabalhar, causavam lancinantes fisgadas.

“Ai... ai...”

“Calma, mãe. To fazendo.”

Não dizia com amor todas às vezes. Certos momentos eram apenas para mostrar que estava lá dando o que havia sido solicitado. A culpa não era minha daquela aflição física, embora mãe trabalhasse para sustentar a casa. Pensava:

“Ainda estou aqui perdendo de fazer as coisas que estava fazendo para ficar massageando. Sei que dói, mas poxa...”.

Na parte “sei que dói...” eu já ficava com vergonha e me arrependia do que pensara.

Enquanto minha mão pressionava, sentia o cascudo da pele do calcanhar. Áspero. Seco. Cru.

“Preciso raspar essas ‘crecas’ do pé.” Ria baixinho.

Só dizia isso para que eu o fizesse. Pegasse um barbeador dos inferiores e, após passar um creme (que mesmo assim ela não gostava, mas pedia), raspasse com cuidado a sola do pé e arrancasse a pele morta. Eu vivia prometendo que faria. Sempre deixava para depois. Quando me dava vontade, preparava tudo, colocava um pano velho embaixo e começava a tirar as pontas de pele endurecida (conhecida como pelancas) que grudavam no edredom de pelo.

“Cuidado, filho, pra não cortar o pé da mãe. Olha as varizes... se cortar isso aí... vai ser uma dor dos infernos.”

Eu queria tanto que ela operasse daquelas varizes. A médica disse que não poderia fazer a cirurgia porque minha mãe tinha a idade X, diabetes, fila de espera, etc. Ser pobre não tem vantagem nenhuma.

Todavia, sempre fora resignada. Aprendera, desde a infância no Nordeste, a suportar e conviver com o que a vida oferece. As mãos do filho (que ainda morava em casa) comprimindo suas pernas cansadas eram o alívio noturno de um dia pesado de serviço, trazendo o sono que as muitas dores tiravam.

O ruim era quando parar. Nas noites em que estava empolgado para jogar um jogo novo, ver vídeos no celular até alta madrugada ou com preguiça mesmo, cronometrava um minuto ou dois. Tinha noites que mãe percebia que eu não estava querendo massageá-la.

“Tá bom, filho. Pode ir deitar.”

Não estava bom. Ainda doía. E muito. Ela que queria poupar o filho que se aborrecia em cuidar da mãe sozinha que, sem querer, sofria com as articulações das pernas. E eu, "amoroso", dava um beijo de “boa noite, mãe” e voltava correndo para a cama. Um pouco culpado, mas voltava.

Por noites ela me chamou e fiquei por alguns poucos minutos. O atrito das palmas das minhas mãos apertando suas canelas, panturrilhas, seus dedos, calcanhares, joanetes. Era maçante, contudo, sempre sentia grande alegria quando conseguia fazê-la dormir durante o processo. E sou sincero em dizer que o alívio não era só por não precisar fazer mais. Era por vê-la sem dor, sem incômodos, tranquila e em paz.

Hoje estou fazendo a mesma massagem que fazia há alguns anos. E ela está recebendo de bom grado. Porém, já não geme, nem reage. A cama onde está deitada é um caixão. Ainda não chegou o carro fúnebre. Faz três horas que não paro de massagear suas pernas geladas envoltas em flores, onde o creme que coloco é feito de lágrimas. Ninguém até agora ousou me tirar de cima dela. É alta madrugada, tem pouca gente na capela e o enterro será pela manhã. O que me conforta é saber que enquanto a massageio pela última vez, ela dorme, sem dor, sem incômodos, tranquila e em paz.

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 13/12/2020
Reeditado em 14/12/2020
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