A fuga

26.05.2018

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Em uma tarde sentado em sua casa, tendo em seu colo uma pasta em que parte de sua história estava ali: cartas, fotos e outras coisas que acumulara durante a sua vida, a revivia agora.

Encontrou a carta que seu pai lhe escrevera quando fora para a Europa com um amigo, meio que fugido, há mais de 40 anos.

Leu-a novamente. Emocionou-se! Seu pai tivera uma atitude de grandeza. Atitude de Pai!

Voltou, então, nos seus pensamentos, para os tempos de adolescente, quando fizera teste vocacional - queria ser engenheiro naval, época do "pra frente Brasil", mas o resultado de suas aptidões foram majoritariamente para a área da Agronomia e da Veterinária, e pouca para a Engenharia, Arquitetura.

Mas não achou tão ruim ser agrônomo ou veterinário, gostava da vida ao ar livre, de animais, da liberdade. Entretanto, seu pai lhe disse que nessa área seria difícil ter trabalho e o encorajou a ser engenheiro, o país estava crescendo e precisava de pessoal para as obras que pipocavam: hidroelétricas, estradas. Tempos do "Brasil Grande "

Seguiu a sua vida de estudante, sem muito pensar ,estava na escola ainda e no Científico, que preparava para a área de exatas; engenharia.

Foi, depois, para o cursinho, de engenharia. Iria desafiar as suas aptidões, sem muita convicção ou vontade, pois estudava mais por incumbência e satisfação ao seus pais : esforçavam-se para que tivesse a formação profissional que não tiveram.

Fez o vestibular para Engenharia Civil e viajou com mais três amigos: um italiano ,apelidado de "Stronzo" (imbecil), que morava no Brasil há algum tempo e já estudava Arquitetura; outro, filho de alemães, o "Alemão", que fizera também vestibular para Engenharia Civil e aguardava como ele o resultado; e o terceiro, velho amigo de escola, sem apelido, que entrara em Agronomia.

Desceram o rio São Francisco de "gaiola", aquelas barcas de roda d'água do rio Mississipi que se viam nos filmes e eram todas americanas, e depois de carona e barraca pelo Nordeste.

Linda e inesquecível viagem que fizeram!

"Alemão" tinha certeza de que entraria na Politécnica. Ele queria somente entrar na faculdade!

No dia da divulgação do resultado estavam em Fortaleza e foram ele e o possível politécnico comprar o jornal na banca. Saíra a lista dos aprovados naquele dia.

"Alemão" todo faceiro, confiante e alegre; ele ansioso e preocupado. Leram no jornal a lista de aprovados: ele agora esfuziante e o amigo desanimando e frustrado.

- Entrei na faculdade, entrei na faculdade - pulava ele em frente à banca, de alegria.

- Não entrei na Poli... - balbuciava "Alemão".

Voltou da viagem, matriculou-se e sofreu o trote, começando sua vida universitária. Sua família estava satisfeita e recompensada - o esforço para o filho obter o Diploma estava quase concluído. Faltava agora ele terminar o curso, formar-se.

Seguiu no seu primeiro ano de faculdade sem muito interesse, porque mais parecia uma continuidade do curso científico e cursinho, com as mesmas matérias e os mesmos assuntos. Nada de novo. A engenharia ainda longe. Não estava gostando!

Relembrou do seu teste vocacional e vocação para agronomia, a sua aptidão, e achou que deveria fazer novo vestibular para essa profissão.

Também gostava da área de criação, arquitetura, talvez uma opção.

Desorientado, estava ele do que seguir?

Ao mesmo tempo, empenhava-se totalmente no treinamento de polo aquático do seu clube - queria ser convocado para a Seleção Brasileira. Estava focado nessa atividade a tal ponto de seu cabelo estar duro, grudado e verde, de tanto cloro impregnado. Nenhum "shampoo" o melhorava. Parecia um "ET" de capacete.

Outra de suas vontades de adolescente era embarcar em um navio mercante e ir para a Europa, trabalhando nele: o seu lado aventureiro e cigano sempre lhe atentando , com sua índole inquieta e rebelde.

Era ele assim: imprevisível, irresponsável talvez?

Chega o final do ano, os exames e ele não passou no seu primeiro ano universitário. Claro, não estudava, só treinava polo aquático e encontrava a turma de copo e de cruz no boteco em que tinham mesa cativa, à noite, para uma gelada.

(Lembrou que tempos depois de formado, seu pai comentava que ele era um gênio: se formara, mas quase nunca o vira pegar nos livros!)

Não fora convocado também para a seleção de polo aquático e não conseguira o navio para embarcar!

O amigo "Stronzo" arrumara uma passagem de avião barata para irem para a Europa, seria em janeiro, no início do ano de 1975. Quarenta e três anos atrás pensou ele. Como o tempo passou rápido.

Disse, então, aos pais que passara de ano e que aparecera esta ótima oportunidade de viagem barata. Iriam correr o continente de trem, comprariam passe de estudante, também mais em conta.

O amigo tinha parentes na Itália, onde ficariam. E sua irmã, uma amiga na Espanha - estudara um período na Suíça antes de se casar, e ficara amiga de uma espanhola de Barcelona, que eles iriam visitá-la.

O pai lhe deu de presente a viage por ter passado de ano!

Não contara a eles que não conseguira.

Aos amigos da engenharia dissera que iria embora, ficar um tempo na Europa. Aqui não era o seu lugar. Queria se aventurar lá, novos povos, novos lugares, o berço da civilização que ansiava por conhecer.

Mas, nada mais era do que fugir do seu "mundinho", que ele mesmo criara.

Antes da viagem, passaria alguns dias com seus pais no interior do estado onde moravam e depois o levariam para o aeroporto internacional ali perto, em Viracopos.

Deixou uma carta para eles no apartamento na capital onde morava, dizendo que ficaria um tempo na Europa e que definiria o que faria: se voltar para a engenharia, tentar a agronomia, a arquitetura ou ficar por lá. Não sabia bem o que queria.

Viajaram, desceram em Madri. Linda a cidade!Depois foram à Barcelona, para a casa da amiga da irmã.

Era ela muito querida e simpática, assim como o seu marido. Trabalhava ele no metrô da cidade e lhe arranjaria emprego. Conversara com eles sobre seus planos de ficar no continente e ao voltar do giro europeu, iria então trabalhar lá em Barcelona.

Tudo arranjado e acertado, seguiu com o companheiro de trem para Milão para a casa do seu tio, onde ficaram por um período. Fariam de lá o peão para visitar as outras cidades e países, pois as distâncias eram pequenas e as viagens de trem, rápidas e confortáveis.

Era inverno, frio intenso, os dias curtos e de pouco sol, com uma névoa pesada e úmida , o que o deixava melancólico e triste. Não era o que esperava. Bateu também remorso de sua atitude para com a sua família, para com o seu pai principalmente. Arrependeu-se!

Foram para Pompeia no sul da Itália, a cidade que foi arrasada pelo vulcão Vesúvio, visitar as ruínas maravilhosas da civilização avançadíssima dos romanos. Viram os desenhos, as pinturas e os afrescos nas paredes ainda preservadas, com perspectiva e profundidade. Técnica perdida nos anos obscuros e cegos que a igreja católica impingiu ao continente, mas recuperada no Renascimento, felizmente.

Ao retornarem para Milão, havia recebido uma carta de seu pai. Não esperava! Teve vergonha de lê-la. Sabia que iria ser recriminado, pois sua atitude não fora a correta com ele.

Mas leu-a, quieto e recolhido, com atenção e sentimento.Estava datilografada:

" Fernandinho.

A tua atitude me deixou bastante aborrecido, tanto que não comentamos com ninguém, nem com sua tia V.(Vera) que repetiu o ano, porque achei que tinha a obrigação de te dar uma viagem à Europa, pois para nós, tinha passado de ano. Também, não ficar mal perante os teus amigos, por ter sido essa viagem muito comentada e com os nossos.

Temos muito orgulho de você e recebemos muitos elogios de nossos amigos, filho bom, atleta, ESTUDIOSO(!), mas passados alguns dias depois do "choque" da sua carta que deixou no apartamento, achei que não sabe bem o que quer, está confuso e indefinido. Eu que nunca INTERFERI nas suas escolhas e sempre o deixei à vontade, acho que agora como pai, é meu dever adverti-lo, porque os meus nunca me forçaram ou incentivaram a estudar, o que nunca os perdoei.

Meu filho, dessa vez eu vou fazer o que meus pais não fizeram, te matriculei na faculdade e se pensar um pouco verá que tenho razão, por que está com 21 anos e se for tentar, veja bem TENTAR agronomia ou arquitetura, ira perder 2, 3 anos, estará com 24, 25 anos e quando sair será "vovô".

Pense bem meu filho, lembre-se do velho ditado: "as barreiras foram feitas para serem vencidas e não desanimar na primeira tentativa". Pelo fato de nunca interferir nas suas escolhas, é prova da minha confiança em você!

Sua atitude, que foi única e exclusivamente para não perder essa bela viagem na companhia de um bom amigo, acho que deveria ter tido diálogo comigo, afinal, tenho procurado ser seu amigo e feito de tudo para termos um melhor entendimento entre nós.

Por isso, estou te dando novo voto de confiança e cumprir com o que disse na sua carta, e lembre-se que estudando só trará benefícios para você mesmo e não serei eu que desfrutarei somente você.

Abraços do seu Pai. "

Chorou arrependido!

Não dormiu direito naquela noite, pensando no que lhe escrevera seu pai. Não era justo, ele não terminar o curso.

Resolveu que poderia fazer suas vontades depois que tivesse cumprido com o seu compromisso com eles: se formar em engenharia!

Iriam para Amsterdã no dia seguinte e resolveu que mandaria um telegrama de lá dizendo que voltaria para terminar o curso.

Foram, e ao chegar foi logo ao correio enviar o telegrama. Custou 50 dólares(!), mas valeram cada centavo! Estava aliviado e ansioso para voltar.

A Europa era linda, mas muito velha.

Não era o seu lugar.

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 03/12/2020
Reeditado em 03/12/2020
Código do texto: T7126624
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