CADÊ A CHAVE DO CARRO?
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Crônica de um leve sinistro de trânsito no meio da madrugada. Fato de veracidade verdadeira. Histórias de família.
  Minha esposa, no meio da escuridão da rodovia da morte, deu um pulo no assento, assustada, e apontou pra frente com o dedo nervoso.
  — Olha, olha, querido, a calota do fusca do Maurício foi embora.
  De fato, meus olhos percorreram a trajetória do pequeno disco a se perder no mato alto que tomava a lateral da autoestrada.
  — Eita, pelo jeito furou o pneu. Ele vai encostar na próxima saída porque trocar pneu no acostamento da rodovia é muito perigoso.
  — Vamos parar, né? Talvez ele precise de ajuda.
  Claro que eu não queria parar. Estávamos vindo de um casamento. Queria uma cama bem quentinha. O problema era que o Maurício, sendo o meu cunhado mala, me obrigava a solidariedade familiar tão típica nestas situações. Encostei o meu Gol bolinha novo junto ao velho fusca e saí para ajudá-lo. Mal cheguei perto do simpático volkswagen, já dei intimação cheio da vontade disfarçada de ajudar.
  — Maurício, cadê o estepe?
  Antes que ele abrisse a boca para responder, a sua esposa em um tom de voz triste, pesaroso, uma preguiça no falar, deu a informação.
  — O Maurício não tem estepe.
  Ele nem me olhou na cara, apenas se colocou de joelho, examinou o pneu com um olhar de entendido.
  — Me empresta o teu estepe.
  — E o tamanho é compatível? – Perguntei desconfiado.
  — Como é que eu vou saber se você não me emprestar. – Ele me devolveu em tom de chacota.
  Veja só! A gente quer ajudar o cara, de boa, e ele vem com uma gracinha dessa, numa escuridão dos diabos, num pedaço desconhecido de fim de mundo. Bem... família é família, é ou não é? Quando você se compromete com a mulher que ama, tem que aceitar o pacote completo.
  Suspirei com ar cansado, fui até meu carro, peguei o meu estepe e deixe-o próximo do local da cirurgia. Intimei novamente:
  — Cadê o macaco hidráulico?
  A esposa do meu cunhado, mais uma vez, tomou as dores do marido com aquela voz lenta, resignada, monótona, de quem está explicando algo para uma criança burra.
  — O Maurício não tem macaco.
  Nem me dei ao trabalho de reclamar. Fui até o meu carro e peguei a ferramenta.
  Quando o Herbie estropiado do meu cunhado começou a ser levantado na lateral em que o transplante ia ser feito, inesperadamente ele se deslocou levemente à frente. Levei um susto, fugindo de quatro pra longe do problema, mas não sem perder a agilidade verbal de indignação no meio da escuridão daqueles ermos.
  — Porra, Maurício, tu não colocou o fusca no freio de mão?
  Advinha só o que a aquela vozinha submissa preguiçosa jogou no meio daquele atropelo? Isso mesmo que você pensou.
  — O carro do Maurício não tem freio de mão.
  Ô, pai celestial, dá-me força para enfrentar as atribulações. Eu já estava quase pensando em pedir o divórcio quando o meu cunhado tomou a responsabilidade, trocando rapidamente o pneu.
  Tudo certo. Pneu trocado. O Maurício e a mulher entraram no carro. Fiquei no lado da janela pronto para intervir se ele precisasse de uma “chupeta” na bateria, como sempre acontecia naqueles momentos idílicos em família.
  Então, para culminar, o meu cunhado ficou procurando algo no chão do velho volkswagen.
  — O que foi, agora, criatura? – Perguntei assustado.
  — Eu preciso ligar o possante, né? Seu Zé Ruela.
  Eu não queria perguntar, mas a curiosidade foi mais forte.
  — Maurício, cadê a chave do carro?
  E, para a minha surpresa, antes que a mulher do meu cunhado despejasse aquela voz melancólica novamente dentro da noite amaldiçoada, ele subitamente pegou uma enorme chave de fenda... isso mesmo que você leu, uma chave de fenda, e a enfiou no embolo de partida do fusca. Na mesma pegada, jogou um palmo de língua pra fora numa careta esforçada para girá-la! Até hoje, não sei como, o Herbie desidratado resfolegou, tremeu, engasgou, peidou-se todo pelo escapamento num barulhão dos infernos e se escafedeu no meio da neblina da madrugada!
  Pode, um negócio desse?
 

Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 02/12/2020
Reeditado em 04/12/2020
Código do texto: T7126183
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