Cocada de Graça
29/11/2020
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Logo depois de prestar o vestibular para engenharia no inicio dos anos setenta, fiz uma viagem ao Nordeste do nosso país com mais três amigos. Fomos de trem, carona, descemos o rio São Francisco de vapor – naqueles barcos americanos do rio Mississipi com roda d’água na traseira - acampamos nas praias, enfim, uma tremenda e inesquecível aventura.
Como antes fora para a Bolívia e o Peru no Trem da Morte, onde me disseram que havia um trem no Brasil tão interessante quanto esse, saindo de Salvador na Bahia, indo até São Paulo, durando uma semana a viagem. Fiquei curioso.
Aventureiro que sou, resolvi pegar esse trem na volta da viagem que fazia. Era ainda puxado por locomotiva “Maria Fumaça”, com vagões de passageiros com bancos inteiriços de madeira, sem poltronas, andando em velocidade media de cinquenta quilômetros por hora, por ser estreita a bitola dos trilhos.
Topei a empreitada, mesmo com meu dinheiro acabando - talvez não desse para cobrir os gastos de alimentação, principalmente. Não pedi emprestado aos amigos, por orgulho e desafio: acharam que eu era maluco em voltar dentro de um trem por uma semana!
No dia da partida, me levaram até a estação tentando dissuadir-me, mas não abri mão do meu curioso desejo. Despedimo-nos; logo nos encontraríamos em São Paulo, disse-lhes.
Subi no vagão muito antigo. Todo em madeira e ferro, assoalhado com tabuas largas e duas series laterais de bancos de assento e encosto também em madeira. Um corredor entre eles fazia parecer uma sala de aulas. Detalhe, o calor era infernal, e claro sem ar condicionado, ou seja, puro masoquismo juvenil!
No vagão, haviam só três passageiros sentados um ao lado do outro em um dos bancos, tendo muitos lugares vagos. Lembro-me bem que fizeram todo o trajeto de uma semana assim como os encontrei: sentados no mesmo banco. Impressionante!
A locomotiva a vapor apitou caracteristicamente, avisando da sua partida. Pela janela, vi que começava a andar lentamente, o trem não era muito grande. O primeiro vagão começou a chiar suas rodas metálicas sobre os trilhos, depois o segundo, o terceiro e assim sucessivamente até o meu, numa lerdeza de tartaruga, até toda a composição começar lentamente a se mover como uma cobra se arrastando, com os sons caraterísticos dos trancos e solavancos dos trens.
Pensei: “daqui a pouco pega velocidade e embala”. Mas, essa já era a de cruzeiro, a ponto das pessoas que moravam ao longo da linha, entrarem e saírem no trem sem qualquer esforço, caminhando pela linha oferecendo cocadas, acarajés e outros quitutes baianos.
Partira perto das sete e trinta da manhã, e meio dia e meia estava distante cem quilômetros de Salvador! O calor tórrido batia forte, mesmo com a pequena brisa provocada pelo deslocamento do trem, que pouco o abrandava. Não havia vagão restaurante e a agua dos banheiros era barrenta e pastosa, impossível de se beber. Os vendedores ofereciam também garrafas d’agua e acabei comprando uma.
Uma hora da tarde, o trem parou em uma vila de casas em “pau a pique” ao longo da linha. Entraram baianas com saias rodadas, turbantes na cabeça e muitos colares coloridos pendentes, oferecendo comida em latas de óleo usadas cortadas longitudinalmente como pratos:
-Olha o almoço! Um real a lata! – gritavam passando pelos vagões.
Um real (em moeda de hoje) a lata é muito barato, pensei comigo, pois estava com fome.
-Oi, o que tem na lata? – era uma de óleo de milho “Mazola” que tinha nas mãos.
-Feijão, farinha, arroz e carne de bode ensopado!
No vapor do São Francisco na nossa vinda, era frequente carne de bode ensopado, e não era ruim. O interessante e pitoresco, é que os passageiros e a tripulação do barco, nordestinos a sua maioria, comiam com as mãos usando a farinha de mandioca para fazer bolinhos mais secos com o feijão, arroz e a carne. Não usavam talheres.
No meu vagão, os três amigos tinham um saco de carne de sol, ou “jabá”, com farinha que compartilhavam sentados juntinhos um ao lado do outro, como sempre, durante toda a viagem.
-Quero uma! – pedi à baiana.
-Qual delas?
- A “Mazola”! – respondi.
-Ah, vem mais. A “Salada” vem menos e é a que custa um real! – respondeu no seu típico arrastado falar, mostrando a lata barata tirada de uma sacola carregada por uma menina, que devia ser sua filha.
A baiana esperta queria se aproveitar de mim por ser turista, pois dissera que custava “o almoço” um real. Retruquei:
-Eu levo a “Mazola” por um real! A senhora disse que o almoço custava um real, e não a marca das latas!
-Dá não! – respondeu.
-Tá bom. Disse-lhe, vendo que atrás dela, outra baiana com a mesma lata fez sinal de positivo em receber um real. Acenei-lhe, que veio prontamente com a “Mazola”!
-E vai ganhar uma cocada também! – falou olhando vencedora para a conterrânea à sua frente que não dera negócio.
-Opa, obrigado!
Comi à moda deles, com as mãos, pois estava sem talheres.
E como a fome é o melhor tempero, o almoço estava delicioso, e com sobremesa de graça, melhor ainda. Viagem inesquecível!
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