Fosfatinho
25/11/2020
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Morei em uma quitinete na Rua das Palmeiras quando estudava na faculdade de engenharia. Era pequena e ficava em frente à da minha tia solteirona, irmã de meu pai. Éramos vizinhos de portas frontalmente, ou seja, ela sabia da minha vida e eu da dela. Às vezes, tomávamos o café da manhã juntos na sua e ela preparava um ovo quente delicioso, inesquecível. Fumante inveterada bebia vários cafés ao dia, fazendo “boca de pito” como dizia, e o que sobrava colocava na geladeira. Não era ruim bebê-lo assim. O cigarro acabou matando-a, infelizmente. Era muito querida e tenho gratas lembranças daqueles tempos.
Almoçava quase sempre em uma pensão próxima, da Dona Maria, que ficava na Rua Martim Francisco, em porão de uma casa onde funcionava o Automóvel Clube de São Paulo. Era casada com um dos motoristas dos guinchos de socorro e fornecia almoço para os que trabalhavam lá ou não. Eu era um dos que não.
A comida era caseira e bem feita, com arroz, feijão, “mistura” diferente todos os dias, tais como bife, frango, e peixe às sextas feiras, dia tradicional do cardápio paulistano.
Um dia cheguei para almoçar e veio ela servir-me, sempre muito calma e solicita de fala mansa e pausada, silhueta avantajada e gorda com seu passo cansado.
-Oi Dona Maria, tudo bem? – cumprimentei-a e sentei-me em mesa sob a janela onde se via a rua, ou melhor as pernas das pessoas que passavam. Algumas pernas eu reconhecia pela sua frequência. Era interessante ouvir as vozes e suas pernas, imaginado como eram seus donos.
-Tudo. Hoje tem a carne de panela que você gosta. – disse sabedora de meus gostos.
-Opa, que delicia!
Acompanhava eu o passar das pernas, quando veio ela com as travessas de salada, arroz, feijão e a carne de panela com molho de tomate e batatas. Cheirava bem, atiçando meu paladar adolescente e faminto.
Comecei primeiro com a salada que comi toda. Depois o feijão; sempre gostei dele por baixo do arroz, com bastante caldo, mas vi que uma mosca caíra nele, inerte e com as perninhas para cima, boiava plácida.
-Dona Maria, olha o que aconteceu! – chamei-a e parei de colocar a comida no prato.
Veio no seu andar paquidérmico, olhou indiferente a bandeja com a mosca no caldo do feijão, e disse:
-Ah, uma mosquinha! Pegou uma colher e tirou o inseto morto.
-Pronto! Um pouco de “fosfatinho” de mosca não mata ninguém e é até bom para saúde, não é mesmo? – voltando para a cozinha, eu acompanhando a cena.
De fato, não era nenhum problema muito sério, pois comíamos certos alimentos que não sabíamos a sua origem, como fabricado, seus ingredientes – naquela época não havia a obrigação dos produtores de descrever nos rótulos o que continham como hoje. Pensei na situação e segui o meu almoço, pois não seria aquela pequena mosca que o estragaria: o cheiro e a visão da carne de panela fumegante foi mais forte. Estava deliciosa; e com o feijão fosfatado pela mosca com o arrozinho branco, um manjar dos deuses. Deixei todas as bandejas metálicas limpas e brilhantes, pois nada sobrou!
-Estava bom, pelo visto hein, mesmo com o feijão batizado. Limpou as bandejas! – falou ao retirar a mesa com seu riso insosso.
-Sim, e lambi os beiços. A senhora é craque nessa carne.
-E o que não mata engorda! – completou.
Passei três anos almoçando lá e estou vivo até hoje.
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