Corpo de Mulher
08.05.2018
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Tinha ele entre 12 a 13 anos e era fissurado em futebol. Fã de Pelé, o mito maravilhoso do futebol, com sua magia e habilidade, genialidade e inteligência: um "dom" inigualável que o conquistara. Pensava um dia ser como ele, imaginando ter também essa qualidade inata.
Passava os dias treinando sozinho, tentando fazer o que ele fazia com a bola e quando ia jogar com os outros, via que conseguia se diferenciar. Tinha mais habilidade que os demais, em sua maioria. Exultava!
Destacava-se, alegrava-se e sentia-se melhor, até superior, talvez para compensar a falta de atenção e valorização que não tinha em sua casa - seu pai nunca assistira a uma partida sua durante este período futebolístico: não tinha interesse pelo futebol!
Sabia também que era bom pelos comentários dos amigos. Até seus pais lhe diziam:
- "Você é um carque, hein! Tá quase igual ao Pelé".
Deliciava-se com essa comparação e elogio.
Havia um negro - mais velho, lavador de carro, muito simpático e querido, gostava dele - que passava frequentemente pela rua da sua casa e vendo-o jogar com os meninos, que deveria ir jogar no Corinthians. Torcia pelo Santos, time de Pelé, claro, e nunca iria jogar no Corinthians, maior rival daquela época!
Conhecia seu pai o lavador e lhe dizia isso sobre o filho, o que o deixava surpreso, mas mesmo assim nunca fora ver se era mesmo o que falavam: um "craque" da bola!
Ele só queria saber de jogar futebol fosse onde, como e com quem fosse, era sua obsessão.
Na escola deixava de assistir as duas aulas iniciais e jogava na quadra. Assistia à próxima aula, vinha o recreio e jogava. Voltava para a classe todo "suado", cara vermelha, cabelos desgrenhados, roupa suja, joelhos machucados e não assistia a última aula antes da saída da escola, pedia "dispensa" falsificando a assinatura do pai na "caderneta" - que aprendeu com facilidade, era muito simples sua rubrica - jogando até o fim do dia.
Também na rua, campinhos de terra, onde pudesse e tivesse com quem jogar, lá estava ele. Um vício! Era o craque da escola, os professores de educação física que o viam jogando o chamavam de "Pelé" também, para a sua gloria. Estava sempre na seleção de futebol para os torneios entre escolas. Popular, se sentia muito!
Mas com essa obsessão, estava segundo o pai, ficando com "corpo de mulher": pernas grossas, quadril largo, sem o tronco e peito desenvolvidos, parecendo uma "coxinha de galinha"!
Tinha que ir nadar para desenvolver o físico e ficar com "corpo de homem", dizia-lhe o pai! Começou, a contragosto, a treinar natação no clube onde a família era sócia. Ficou definido: jogar futebol se treinasse natação. Era a condição.
Nadava bem, com estilo, mas detestava treinar, achava muito chato e fazia de tudo para não ir todas as manhãs - estudava à tarde - alegava que ia chover, que estava com dor de cabeça, de garganta e torcia para amanhecer chovendo, inventando todo o tipo de desculpa para não nadar.
Seu negócio era " bola e bola " e ao contrário, em qualquer condição de tempo, temperatura e pressão jogava - quando chovia um dia ou horas antes de ter um jogo, colocava um ovo em cima do muro para parar a chuva. Simpatia que às vezes funcionava!
Então, nas voltas que o destino nos dá, conheceu uma menina que se mudara para a casa em frente onde jogava com a molecada, na rua ao lado da sua. E, era nadadora!
Loiríssima, cabelos longos e lisos, olhos pequenos mas risonhos, pele amorenada do sol. Interessou-se por ela.
Assim, por causa dela, voltou a querer treinar natação, dizendo que não gostava do treino do seu clube. Convidou-lhe para ir para o dela como militante. Foram juntos fazer um "teste", ele.
Passou, começando assim sua carreira aquática, mas que durou pouco nesse clube. Iam todos os dias a pé - moravam perto do clube, conversando alegremente e enamoradamente, ele por ela.
Mas nos treinamentos e na convivência da piscina, viu que ela gostava de um nadador que não ele! Ficou frustrado e decepcionado. Perdeu o interesse - começou a vagabundear, matava os treinos, fazia bagunça na piscina até ser dispensado da militância pelo treinador - machucado em seu amor próprio, por sentir-se "trocado"!
De orgulho ferido e para mostrar a ela que podia ser tão bom quanto o seu "queridinho", recomeçou a treinar no seu clube, com afinco e determinação, se empenhando diariamente, fins de semana, de forma obsessiva. Conseguiu se tornar um bom nadador, mas não um campeão. O "queridinho" era melhor que ele, tinha que admitir.
E ironicamente, tempos depois o treinador que o havia dispensado do clube dela, foi para o seu e quando viu que estava na equipe lhe disse:
- Você aqui, não acredito!
Ficaram, amigos, treinou um tempo mais com ele e foi jogar polo aquático, onde era bem melhor.
Ele, o treinador, treinou seus filhos depois também.
A menina nadadora nunca mais viu, assim como ao seu "queridinho", mas lhes é grato por terem feito com que ele se desenvolvesse no nado, descobrindo que era esse o seu meio, a água.
E a seu pai, também.
Até hoje ele continua a nadar, há muitos anos não joga mais futebol.
E não ficou com corpo de mulher, como o pai achava que ficaria!
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