Montiere
Montiere era um ser desprezível. Racista, xenófobo, homofóbico, avarento. Tinha uma loja de artigos finos. Caros, na verdade. Pra evitar que certas classes sociais ali entrassem. Não andava bem das pernas. Vivia de empréstimos para mantê-la. Tinha sempre dois funcionarios em sistema de rodizio forçado, pois era tão desumano que ninguém suportava trabalhar para ele por um mês. Aproveitou as benesses que a reforma trabalhista trouxe aos empresários para explorar ainda mais os trabalhadores. Quanto a clientela a ordem era CLARA. Mesmo com dinheiro, se entrasse alguém "inconveniente" tinha que dar um jeito de dispensar.
Não suportava ver, ao cair da tarde, a procela de moradores de rua que se abrigava sob as marquises das lojas do outro lado da rua. Aqui não! bradava orgulhoso de si mesmo.
Tinha o habito de passar de carro à noite e jogar água se flagrasse alguns destes vermes em frente à sua loja. Todo dia antes do expediente mandava lavar com creolina a calçada. Vai que um destes infeliz dormiu ou passou por lá.
Carro com vidros bem escurecidos. Essa cor de vidro ele suporta, porque é vidro. Certa feita foi parar na delegacia porque avançara com o carro sobre um daqueles lavadores de para-brisa. Pagou fiança e saiu pela porta da frente.
Outra vez xingou de tudo quanto é nome um moleque que pendurara o saquinho de bala em seu retrovisor. Ainda bem que é elétrico, pensou. Senão jamais teria coragem de tocar no espelho novamente para ajustá-lo.
Montiere veio do estrangeiro. O avô militou nas fileiras do exército do Duce. Orgulhava-se. Largou a esposa porque descobriu que ela participava às escondidas de bazar beneficente. Por que ajudar os fracassados? pensava. Que lutem pra conseguir assim como eu consegui.
Um dia conversava com um fratello que lhe colocou contra a parede. Você e eu somos estrangeiros numa terra que nos abrigou. Como pode odiar essa gente que nos deu guarida? Sentiu uma vontade imensa de socá-lo, o sangue subiu, mas tal qual o deputado da mala, preferiu fugir pra evitar que tanto ódio desandasse em tragédia.
Num final de tarde ao observar com nojo a matilha de miseráveis do lado oposto, reconheceu o pivete que "estragara" o seu retrovisor. Só não foi pegar o moleque pelas orelhas porque não queria sujar as mãos. Na verdade é porque eram muitos e ainda haviam os cachorros.
O pai do moleque certo dia bebeu demais e resolveu desafiar a macheza de Montiere. Noite fria, garoa fina. Esperou o fascista ir embora e foi pra frente da loja. Urinou, defecou e dormiu na frente da porta. Naquela noite Montiere fez a ronda costumeira e ao ver aquela cena mandou água gelada pra cima do mendigo.
O desafortunado adoeceu. Foi pro hospital. Piorou. Morreu. O moleque ficou abandonado. Foi levado pra um orfanato. Passou uns anos lá.
Um certo dia surge um casal de suecos. Encantaram-se com o moleque. Adotaram.
Passou o tempo. A loja de Montiere estava à venda. Um casal quer investir em algum comércio. Interessam-se pela loja, que só não fora vendida antes por uma condição. Montiere aceita vender, mas quer ser o gerente. Não quer ver a obra de sua vida tomar outro rumo enquanto ele for vivo. O casal aceita. Com uma condição. Que o filho seja o manda-chuva. Trato feito.
No outro dia o casal apresenta o filho. Montiere tem um choque. Todos os seus demônios emergem de uma só vez. Sai correndo. Atravessa a rua sem olhar. Um coletivo apinhado de pobres o atropela. Acidente fatal.
Não tem nenhum parente. Ou ao menos alguém que queira se declarar parente. É enterrado no cemitério Ouro Preto. Vala comum. Por dois coveiros pretos. Sua cova não é possível ser identificada. Não há a lápide com a hipócrita inscrição: aqui jaz Adolfo Benito Montiere. Pai maravilhoso, esposo fiel, amigo de todos. Repousa até hoje cercado por todos os lados de outros pobres cadáveres. Em vida, todos pretos.