O deserto só areia

“Eu queria morar numa favela

O meu sonho é morar numa favela”.

Gabriel o Pensador

Os transeuntes do centro da cidade chamam-no de Roupa Andando. As palavras dos outros não o tocam mais. Tapou os buracos da cabeça com a cera da indiferença. A cera que era fabricada por todos servia para ele como um protetor de ouvidos.

O mendigo caminha trazendo junto ao peito magro e às roupas sebentas um ar de fantasma cansado. Um fantasma que não amedronta a todos, apenas enoja-os. As palavras das pessoas não pesavam como pesavam os gestos e os olhares que se descolavam de seus corpos como folhas de uma árvore sacudida.

Os olhos remelentos e baços miravam à frente.Via apenas o vulto das pessoas. Com passos vacilantes dirigiu-se ao muro e recostou-se nele. Abriu a boca e tomou um grande gole de ar. Depois, deslizando devagar pousou a bunda na calçada quente. Abriu o túnel da boca e esticou o braço seco para o vulto que passava.

-U’a ismola, seu moçu...

Já sabia a resposta, por isso nem a ouviu. Tentou se levantar. Ficou de quatro e, lentamente, ergueu-se como um pesado tapete sujo. Andou em círculos ao redor da própria sombra antes de se aprumar e seguir adiante.

A sombra do mendigo passa sobre a calçada como um vento morno no deserto. Parece queimar alguns rostos que imediatamente se viram para o lado. Ele segue arrastando os chinelos encardidos para longe do centro. Foi minguando igual à água na terra seca em direção ao subúrbio de casinhas quadradas.

Sem rumo. Era só um estômago caminhando. Parou abruptamente ao ouvir o barulho de uma porta batendo, acompanhado de gritos:

-A há! Te peguei!

-Esse lixo é seu, tá?

Duas senhoras obesas empurravam um saco de lixo com suas destemidas vassouras. A cabeça magra do mendigo ia de uma vassoura a outra, mas não as via. As senhoras estavam a ponto de se baterem quando sentiram o cheiro da presença dele. Primeiro pararam, depois se afastaram. Em seguida passaram depressa pelos seus portõezinhos de ferro. Falaram resfolegando:

-Ele vai pegar o seu lixo!

-O seu lixo é dele agora.

Continuaram discutindo, aos gritos, enquanto o mendigo se distanciava com o embrulho colado ao estômago. Ouvia apenas e de bom grado o coração que batia.

make
Enviado por make em 21/11/2020
Reeditado em 21/11/2020
Código do texto: T7117336
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