Fidélis
7:06 da manhã. Madrugada mais gelada do ano. No telejornal, o repórter informa a morte de um morador de rua, possivelmente devido ao frio.
Ao ver a notícia, a esposa, trabalhadora voluntária muito dedicada, lamenta desolada. "Se tivéssemos atuado nessa região, essa pobre alma ainda estaria entre nós". Ao que o marido concorda e completa. "Preciso aumentar minha contribuição para a instituição. Não podemos aceitar de braços cruzados que estas situações continuem a ocorrer. Se o Estado não faz sua parte, nós devemos fazer”.
A esposa, mulher de elevada espiritualidade, entende que através de obras de caridade pode melhorar o mundo e assim também atingir a plenitude de sua alma. O marido, mais racional, acredita que cada qual possui o seu dom. O dele é contribuir para que as pessoas mais espirituosas possam realizar o trabalho muito melhor do que ele se propusesse a fazer.
Terminam o café. Despedem-se. Cada um pega o seu carro e se dirigem ao trabalho.
Fidélis é engenheiro civil, autônomo, dono de um pequeno escritório na região central. Pai de uma linda família, destas de propaganda de margarina; uma esposa amorosa e um casal de filhos bem criados, extremamente educados e atenciosos. Homem simples, sem muitas ambições, costumava se definir como um cidadão de bem, mas devido a conotação que a expressão adquiriu nos últimos tempos, prefere dizer que é apenas um ser humano de grande coração.
A caminho do trabalho, no conforto do ar condicionado, ouve as notícias da rádio trânsito. Dirige com muita atenção. A pista está escorregadia por causa da fria e fina garoa que cai. A cada ponte que passa, se depara com uma matilha de mendigos amontoados, procurando se proteger da chuva e do frio. Aquilo fere o seu coração. "Preciso urgentemente aumentar as minhas contribuições", pensa em voz alta. O trânsito pesado faz ele redobrar as atenções ao volante, esquecendo-se momentaneamente da sofrida pobreza que avistava.
Ao chegar ao trabalho, a secretária lhe informa sobre uma visita que chegara antes mesmo dela abrir escritório e desde então o espera. Fica intrigado. Não havia nenhuma visita agendada. Vai atender o ansioso cliente.
Ao avistá-lo, porém, sente uma energia diferente, impar; nunca sentira algo assim antes. Apresentam-se. O cliente é Josemário, um milagre vivo da providência. Homem de meia-idade, expressão angelical, figura carismática, de sorriso irradiante. Ex-traficante, estuprador, ex-assassino, ex-tudo o que se possa imaginar de ruim, ex-presidiário. Cumpriu a sua dívida com a sociedade. Na prisão encontrou-se com o caminho da libertação. Hoje propaga a sua história como exemplo de salvação num pequeno templo que mantém na periferia da cidade.
A empatia é imediata. Josemário explica ao engenheiro que por muitas noites tem sonhado um mesmo sonho. E que a providência o imbuiu de procurar aquele escritório, que ali o seu grande projeto começaria a se consumar. Tinha motivos reais para acreditar. Sua simplória instituição fora presenteada com um grande terreno num bairro distante e ali deverá ser construído a sede de uma nova e grandiosa instituição. E Fidélis fora o escolhido para tornar o sonho em realidade.
O engenheiro maravilha-se. Não pode ser um acaso. Ele sempre se imaginou contribuindo para uma grande obra de caridade e agora a oportunidade está ali, diante dos seus olhos, através daquele milagre da natureza.
Envolve-se profundamente na obra. Doa o projeto, seu trabalho, contribui com seus próprios recursos. Segue à risca tudo o que Josemário propõe. Afinal ele é o ser iluminado, guiado pelos desígnios divinos.
Como toda grande obra, surgem alguns problemas. Qualquer um que já teve o dissabor de lidar com a burocracia da prefeitura, sabe bem a aventura que é. O primeiro projeto foi rejeitado. Fidélis o refaz pra atender as exigências. Novamente negado. Josemário diz que só com uma pequena contribuição - a famosa propina - poderá ser liberado. Mas a instituição não tem todo o valor. Fidélis se propõe a complementar. Os problemas continuam. Licenças, documentos, uma burocracia sem fim.
Fidélis, cada vez mais comprometido com a missão, acaba relegando outros clientes, outros trabalhos, enquanto compromete seu tempo e recursos. Em casa não consegue mais dar à família a mesma atenção. A esposa o apoia mas lhe dá alguns alertas.
Vem uma boa notícia. Documentos todos aprovados.
Numa manhã de domingo, numa cerimônia pomposa, Josemário e o seu fiel amigo lançam a pedra fundamental. Êxtase total.
Chega a etapa da construção. Seguem-se os problemas. É material que não chega, que chega errado, que não está disponível; problemas logísticos, financeiros, emocionais. A vida de Fidélis virando do avesso mas ele se põe incapaz de perceber.
Fecha o escritório. Em casa as contas se acumulam. Os filhos não podem mais continuar na escola particular. Desfaz-se de bens. Começam as brigas. A mulher não suporta mais. Fidélis abandona a casa e vai morar num minúsculo quarto de cortiço.
Josemário, de carro zero quilômetro, um sedã de luxo, o aconselha a suportar todas as provações. Diz que a vida dos eleitos é assim mesmo. O inimigo o tenta a desviar-se do caminho, mas ele deve ser forte, não pode ceder. "Mire-se no meu exemplo", diz. E parte, acelerando fundo aquele novo carrão. Fidélis se acalma e segue trabalhando, frustrando-se, sonhando, decepcionando-se, definhando...
Surge uma perigosa pandemia que força a todas as pessoas, em todo o planeta, a se isolarem em casa.
Passam-se os anos. Não se tem mais notícia de nosso amigo Fidélis.
Madrugada fria, a mais gélida deste ano. Josemário, no mesmo templo simplório, ao lado de sua nova e dedicada obreira, celebra uma vigília em prol de todos aqueles que estão ao relento, desabrigados. Que o poder divinal lhes aqueça e conforte.
7:06 da manhã. No telejornal o repórter noticia que um homem foi encontrado morto, possivelmente de frio, ao lado da pedra fundamental.