SUA EXCELÊNCIA, O CANDIDATO!
Um dia frio, um bom lugar pra ler um livro. Estava seguindo os conselhos do mestre Djavan, quando a campainha tocou. A campainha me tirou da companhia de Ariano Suassuna e coloquei o marca texto no livro do gênio, imortal da Academia Brasileira de Letras. Ainda ria das aventuras de Chicó e João Grilo quando deixei a cama. -"Tem um moço aí. É o filho da dona Nita." Disse minha mãe, de avental e com a escumadeira na mão. Chuva. Nada melhor que um bolinho de chuva. Fui receber o visitante. -" Bom dia, Cosme! Sou o Beco, filho da dona Nita. Posso ter um dedo de prosa com você?" Concordei, apesar dele ter me chamado pelo nome do meu irmão. Eu sabia quem era a dona Nita mas não sabia que ela tinha um filho. Olha que eu morava há trinta anos naquela rua mas nunca o tinha visto mais gordo. Dona Nita era uma senhorinha simpática, que morava na esquina da rua. Era viúva, cabelos brancos como a neve, o corpo curvado devido aos anos de trabalho. Uma perna enfaixada, uma ferida que não fechava devido ao diabetes. Recolhia material reciclável para completar a aposentadoria e cuidava de dois netos. Ela ia, de casa em casa, recolhendo os materiais que os vizinhos separavam. Agradecia a boa ação das pessoas. A tarde, ela vendia pães e doces. Algumas vezes presenciei a santa mulher dando pães de graça a moradores de rua. Vendia balas de côco incríveis, coloridas, que ela mesmo fazia. Tinha sempre uma história boa, uma piada. Não reclamava de nada. -"Deus sabe o que faz!" Era a frase que sempre repetia. Devia ter uns setenta anos mas era uma criança, brincalhona e extrovertida. Nas missas, era a primeira a chegar. Sempre de branco, com a faixa vermelha do Apostolado da Oração no pescoço. -" Essa faixa cai melhor com uma camiseta ou blusa branca pois o vermelho destaca e sobressai. Se eu usar com a roupa estampada ou colorida, vai sumir. Roupa estampada é pra churrasco, forró da terceira idade. Saia e blusa estampada? Isso nunca, eu não uso pois fica berrante. Capaz de passar o ônibus da seleção da Jamaica e me levar, achando que eu estou com o uniforme deles!" Era um barato conversar com ela. A mulher cumprimentava a todos, com um sorriso verdadeiro. Pudera, tinha sido a primeira catequista do bairro e servente da escola estadual por dez anos. Conhecia muita gente. Uma das primeiras moradoras do bairro. Levava carrinhos de concreto, colaborando na contrução do salão de festas da paróquia. Uma mulher de fibra. A casa dos cachorros, como a molecada da rua dizia. Dona Nita recolhia e cuidava de mais de vinte cães abandonados e maltratados. A casa dos pés de goiaba, jaca e mangas. Tinha um girau com orquídeas. Uma dezena de pés de rosas, com as quais ela conversava. Ela dividia as frutas com os vizinhos. Pra não estragar, ela repetia. Na semana do natal, tinha fila na casa da dona Nita pois a gente ia pedir limão galego pra temperar carne. Uma vez, não tinha dinheiro para ir a um passeio da escola e pedi a minha mãe. Ela também não tinha. Minha mãe saiu e logo retornou com o dinheiro. Fiquei super feliz. Descobri, anos depois, que fora a dona Nita que emprestara o dinheiro do passeio a minha mãe. Abri o portão. -"Olá. Sou o Beco, filho da dona Nita!" Cumprimentei o moço sorridente. Ele quase quebrou meus dedos com o aperto de mãos. Bateu no meu ombro. -" Eu estudei na mesma escola que você, a Matarazzo! Duas séries antes mas eu sempre o via. Era uma época boa, professora Dina. Lembra dela?" Eu não lembrava dele, tampouco da professora! O cara sabia o meu nome e dos meus treze irmãos, coisa que eu me confundia. -"Eu o vejo sempre, vindo do trabalho!" Só vê, pensei com meus botões. Convidei-o para entrar. -" Deus me revelou que eu deveria me candidatar e sou candidato a vereador, sabe! Decidi entrar para a política e lutar para as melhorias para o povo!" Entregou-me um calhamaço de santinhos do partido! Beco da dona Nita, número 155151. -" Não sou igual a todos os demais candidatos pois somos cristãos! Isso é fundamental. Vamos eleger gente boa e de fé." Concordei balançando a cabeça. Ele olhou para o crucifixo na parede. -"Cheiro de bolinho de chuva!" Minha mãe veio até a sala e senti ciúmes do modo como a abraçou. Nem eu, nos meus cinquenta e seis janeiros, a abracei daquele jeito. -"Minha mãe amava a senhora!" Ele abaixou a cabeça por um instante. -" Minha mãe falou, por meia hora ou mais, sobre a amizade com a mãe do rapaz. Os dois com os olhos marejados. -"Vai ficar feliz com um café e bolinho de chuva!" Disse minha mãe ao candidato. Dona Nita tinha partido há dois anos. O moço se recompôs quando eu, me arrependi disso depois, perguntei as suas propostas. Uma hora desfilando um rosário de lamentações e promessas. Concordei com todas. Eu escutava mas por dentro tentava recordar daquele sujeito e não conseguia. Acho que uma vez passei por ele mas não respondeu ao meu bom dia. Saiu da casa da santa dona Nita e entrou no bar do Gordo. Só isso! Beco. Partido Liberal da Nação. Número 155151! -"Não tem erro, número fácil pra decorar, quinze e a pinga em dobro, 51, 51!" Disse ele, terminando de tomar a terceira xícara de café. -" Minha mãe foi uma das fundadoras do bairro. Foi servente da escola, merendeira, catequista da igreja. Só não rezava missa pois o padre não deixava mas fazia de tudo." Engraçado que ele falava mais da mãe do que dele. Ganhei seis canetas, com o número dele impresso. Escritor ama ganhar caneta. Ganhei um bloco de anotações e uma camiseta de sua excelência, o candidato. Acompanhei o moço até o portão. De novo o aperto de mãos quebra ossos. O tapinha nas costas. Ele ia visitar os outros vizinhos. Desejei-lhe boa sorte nas urnas. -" Ótimo rapaz, filho." Disse a minha mãe. Eu estava tão atordoado que nem respondi. Nas semanas seguintes, quando ele me via, fazia festa e vinha, pra minha dor, dar seu aperto de mãos. Vi o moço na feira do domingo, devorando um pastel e distribuindo santinhos. Pegou uma criança no colo, pra assistente tirar uma foto mas logo a devolveu pra mãe. O carro de som do candidato Beco da dona Nita passava, de hora em hora, pela rua. A caixinha de correios entupida de santinhos com a foto do moço. Beco da dona Nita, o candidato a vereador da nossa rua. Estranho que a boa senhora, tão simpática e falante, não falava desse filho. Era um desconhecido, para mim e para a vizinhança. Uma faixa grande do candidato, em frente a casa que fora da dona Nita. Ele cortara os pés de goiaba, jaca e manga. Não tinha nenhum cão na casa nem pés de rosas. O quintal estava todo concretado. Na escola do bairro, no dia da votação, lá estava o sujeito, o Beco. Boca de urna. Três moças, sorridentes, com a camiseta do candidato. Outro abraço e outro aperto de mãos. -"Trouxe a colinha com meu número?" Mostrei o santinho dele pois já sabia que perguntaria. -" Deus o abençoe grandemente, amigo. Obrigado pelo apoio." Como esquecer o número do cara com o jingle, uma versão adaptada de um sucesso do grupo Molejo! O carro de som passando e azucrinando os miolos.... como não lembrar do número do cara?!? A fila da votação. Amigos antigos que a gente reencontra apenas em dias de eleições e velório. Entrei na seção. O título eleitoral. A urna. Tirei o santinho do cara do bolso. Aquele sorriso. O número. Olhei bem e recoloque o santinho no bolso. Votei em outro candidato. -"Desculpa, dona Nita. Não vou votar no seu filho. Creio que nem a senhora votaria nele! Pessoas iguais a senhora nem precisariam fazer campanha. Eu votaria na senhora de olhos fechados. Voto é sagrado e temos que escolher bem nossos candidatos!" Pensei. Na apuração, o Beco teve apenas um voto. Se ele votou nele mesmo, significa que nem a esposa votou nele! Eu, einh?!?? FIM