O Tribunal e o Caso Zé Porquinho

A sessão começou agitada no Tribunal da cidade de Alta Floresta, interior de Mato Grosso. O juíz Camargo havia revogado a decisão de seu colega de toga, o respeitado juiz Vespasiano, enquanto este se encontrava de férias.

O primeiro mandou prender Zé Porquinho, famoso ladrão da cidade, que havia feito carreira junto de seu bando roubando animais das fazendas para matar e vender a carne no mercado paralelo, cancelando a decisão do segundo, mais antigo na corte. Este havia mandado soltar o criminoso, com base numa falha do Ministério Público que não havia pedido a renovação da prisão preventiva no tempo hábil. Uma decisão legal mas altamente questionável considerando a fama do beneficiado.

O caso gerou forte repercussão na cidade, principalmente entre os donos das fazendas, criadores de gado, que sofriam os prejuízos da astúcia do criminoso, e também, porque não dizer, dos açougueiros locais e das cidades vizinhas que compravam o produto ilegal (mas bem mais em conta) oferecido pelo meliante.

Com a forte influência da associação doa fazendeiros da região que, se utilizando da imprensa, fez dura campanha contra a soltura de Zé, rapidamente Dr. Camargo se arvorou na condição de defensor da honra do Tribunal e para limpar a barra da Justiça, cassou a decisão do colega, num gesto impensável entre membros do corporativista judiciário local. Tarde demais, o ladrão já havia sido liberado e sumido da pequena cidade.

Ao retornar de suas merecidas férias, Dr. Vespasiano ficou irado ao tomar conhecimento da canetada do colega e pediu uma imediata reunião com todos os juízes daquela localidade. A imprensa em polvorosa, tratou de pedir que o ato fosse público, transmitido pela rede de televisão municipal, e os magistrados, colocados contra a parede, não puderam negar o pedido.

No dia marcado o ofendido iniciou um duro discurso onde questionou se o colega possuía competência legal e moral para modificar a decisão de outro igual:

"Nobres colegas, em que pesem as preocupações dos ilustres fazendeiros desta cidade, o ponto que quero trazer a análise, é se um juiz pode modificar a decisão de outro juiz. Não me interessa nesse momento saber se Zé Porquinho é culpado ou inocente."

O Silêncio foi total na sala de reuniões...

Dr. Camargo pediu a palavra e defendeu a sua decisão:

“Excelentíssimos colegas, nutro grande respeito pelo nobre Dr. Vespasiano, um dos magistrados mais antigos deste tribunal. Entretanto, a delicada situação ocasionada pela ordem de soltura de Zé Porquinho deixou esta casa e todos s seus membros em situação muito ruim perante a sociedade altaflorestense. Por isso, por se tratar de situação excepcional, resolvi muito a contragosto, modificar a decisão do ilustríssimo colega, a quem repito, nutro profunda admiração.”

No Clube Alta floresta, onde os ricos fazendeiros acompanhavam atentos a sessão pela TV, a declaração de Dr. Camargo foi comemorada como um gol da seleção em época de copa do mundo.

O assunto foi colocado em votação e todos os 5 juízes daquela comarca foram instados a se manifestar. Não havia saída: teriam que tomar uma posição, escolher um lado e dar a cara a tapa perante toda a comunidade da cidade.

O primeiro foi o próprio Dr. Camargo, que por óbvio, votou pela manutenção da prisão de Zé Porquinho em nome da honra do tribunal. Fogos de artifício foram ouvidos.

O segundo, o decano, juiz mais antigo daquela localidade, Dr. Silvério, conhecido pela rigidez de suas decisões, fez longo discurso pela impossibilidade de um juiz poder modificar a decisão de um colega de toga e quando todos achavam que votaria pela decisão de soltura do marginal, prestigiando a lei e seu contemporâneo colega, surpreendeu e votou pela manutenção da prisão de Zé Porquinho.

Dr. Vespasiano fuzilou o colega com os olhos. Não podia acreditar que depois de mais de 30 anos de amizade, que havia se iniciado nas carteiras da Universidade Federal de Mato Grosso, o amigo estava votando contra a sua decisão.

A votação seguiu e era a hora do voto da Juíza Adelaide. Filha de fazendeiros, parente de políticos locais e frequentadora das mais altas rodas da elite local, não foi nenhuma surpresa o voto pela manutenção da decisão que determinou a prisão de Zé. Foi um voto previsível.

A essa altura a decisão já estava tomada. Eram 3 votos de 5 pela manutenção da prisão.

Mais ainda faltava o voto de Dr. Sebastião, o mais jovem juiz daquele tribunal, conhecido por ser o que é conhecido no mundo do direito como um garantista, ou seja, um defensor da lei, acima de qualquer outra questão. Por essa característica, em condições normais era certo o voto do jovem pela soltura do famoso ladrão. Ocorre que com transmissão ao vivo para toda a cidade e com o placar já definido, não valia a pena marcar posição e cair em desgraça com os moradores da localidade. O resultado foi mais um voto pela manutenção da prisão.

Por último, o derrotado Dr. Vespasiano. Mesmo com o gritante resultado ele não perdeu a pose e sustentou a legalidade sua decisão, afinal de contas, não havia embasamento legal para manutenção da prisão.

Culpa do Ministério Público que não pediu a renovação do encarceramento!, bradava ele.

Como esperado, votou pela soltura do elemento, ratificando a sua posição inicial. Entretanto não poupou críticas a todos os colegas que em suas palavras, “validaram uma ilegalidade e deram poderes de ditador ao juiz que modificou a decisão de um par.”

Finalizada a votação, um burburinho começava a correr pelos corredores do Tribunal. Um dos funcionários da corte descobriu que o advogado que havia elaborado o habeas corpus que ocasionara a soltura de Zé Porquinho, fora assessor do gabinete do juiz Vespasiano. E além disso, constataram que o causídico havia esperado o momento certo para dar entrada no pedido, sabendo que cairia nas mãos do seu ex-chefe, que estava de plantão no dia em que recebeu a petição.

Imediatamente todos passaram a desconfiar do zelo pelo cumprimento da lei demonstrado pelo velho magistrado, colocando em dúvida o seu tão alardeado compromisso com a justiça.

A essa altura o roubo de animais nas fazendas já havia retornado, o bando de Zé Porquinho estava de volta à ativa.

*Inspirado no caso André do Rap que movimentou recentemente o STF.