A TURMA DO FUNDÃO.
-"Alphonsus Rodolfo, telefone pra você!" O adolescente sardento olhou para a mãe. -"Já vou!" Respondeu ele, deixando de lado uma revista do Recruta Zero. Não se conformava com a morte da Rê Bordosa, personagem porra louca dos quadrinhos do Angeli. Tinha o quarto cheio de posters dos heróis da Marvel. Atrás da porta, os adesivos de marcas ligadas ao surfe. -"Poxa. Quem será?" Atravessou a sala com seus tênis Adidas. Odiava quando a mãe o chamava pelo nome. Alphonsus com ph. Não bastasse o Alphonsus tinha o Rodolfo, homenagem ao avô materno. Um nome que lembrava os antigos poetas do parnasianismo ou algum dos heteronômios do poeta Fernando Pessoa. -"Prefiro ser chamado de Pereba!" De tanto falar, o apelido pegou. O irmão mais novo passou por ele. -"Pereba, vamos fazer uma pipa?" Ele fez sinal de positivo com o polegar. Sorriu e mostrou o sorriso metálico do aparelho dentário. Um cheiro de pastel vinha da cozinha. A televisão preto e branco passando O Sítio do Picapau Amarelo. O carro da pamonha de Piracicaba, fazendo propaganda na rua. O pai chegou do trabalho e jogou a mochila no sofá. Abraçou Alfredo, de sete anos. Deu um tabefe carinhoso na cabeça do Pereba, derrubando seu boné dos Lakers e revelando as orelhas de abano do adolescente de dezesseis janeiros. O cabelo longo e ruivo. As grossas sobrancelhas. Os braços grandes e uma magreza de dar dó. Ele tirou o chiclete Bubaloo da boca. Quem seria ao telefone? Ninguém ligava pra ele. Quando o telefone tocava, geralmente era da firma do pai ou a mulher do Avon, cobrando a mãe. Às vezes, a professora da creche do Alfred ligava, quando esqueciam de buscar o garoto. Ele pensou no diretor da escola, o carrasco Amaral. Será que descobriram que foi ele que furou os pneus da Brasília do professor Neriberto? -"Alô!?" Disse pra dentro, tímido. A voz do outro lado quase o deixou surdo. -"Oi, Pereba. É a Marluce!" Ele deixou o corpo cair no sofá, puxando o fio do telefone. Se beliscou, mentalmente. Será que ele estava sonhando? Seria a mesma Marluce da sétima série, a que sentava na primeira carteira da sala? A Marluce CDF, que só tirava notas altas e além de tudo era linda?!? -"Oi.... é! Com... como conseguiu meu telefone?!" Ele tinha um sorriso no canto da boca. -"Quem é, filho? Se for o seu tio Jonas, diga pra vir consertar o chuveiro!" O cachorro entrou na sala, sujando de barro o tapete. -"Peguei seu número com o Cebola, que senta com você no fundão!" Havia um muro de Berlim na sala de aula, entre a turma do fundão e os CDFS da frente. A turma do fundão, as carteiras quase coladas. Pereba, o Cebola, o Dudu, o Astrogildo que vivia dormindo, o Maicon e seu capuz pra esconder os fones de ouvido. O cara só escutava Michael Jackson e Racionais. Uma galera unida, sobretudo em tirar notas vermelhas. O que uma menina CDF queria com ele? Fazer trabalho grupal ou pedir caderno emprestado, impossível. Em um semestre, nenhuma palavra entre eles. Nem em sala de aula nem nos recreios. Nem dela nem das cinco amigas da patota das patricinhas. -"Ah, tá! Beleza, Marluce." Ele procurou não fingir surpresa. -"Você está a fim de ver uma peça comigo?" Ele deixou o telefone cair. Dessa vez se beliscou de verdade. -"Peça? Eu e você.... sério isso?!!" Ela foi taxativa. -" Sim. A Joelma está doente, a Luna viajou com a Sofia. Não quero ir sozinha ao teatro!" Pereba ia fazer a pergunta crucial mas ela se adiantou. -"O Plínio! Antes que você diga, eu terminei com aquele traste!" Pereba deu um sorriso de orelha a orelha. -"Não. Nem pensei nele. O que vai ter de bom no teatro? Não estou antenado." Ele riu pois foi irônico. Antenado vírgula, ele vivia fora de órbita. Teatro! Nunca passara nem na frente de um deles. Teatro não era sua praia. A única peça que assistiu na vida foi a Via Sacra da paróquia. Não gostou da violência mas riu muito ao ver um dos atores com relógio de pulso. -"Eles não usam black tie!" Disse ela. -"Eles não usam o que?! Isso é o nome da peça, Marluce?" Ele não segurou o riso. -" É assim mesmo, Pereba. Black tie é gravata, essas coisas! Um traje chique. Será uma única apresentação na cidade, desse clássico do teatro brasileiro! Você vai ou não vai comigo no sábado?" Ele se ajeitou no sofá, arrumando as almofadas com fotos dos Menudos, grupo porto-riquenho que a irmã de vinte anos adorava. -"Claro. Lógico que eu vou. Espero ser boa companhia!" Tentou colocar sensualidade na voz de taquara rachada. -"Fechado, então. Meu pai vai nos levar. Passaremos às sete na sua casa. Tchau." Ele parecia flutuar. -"Fechado, Marluce. Tchau." A mãe entrou na sala. Alfredo derramou suco no chão. O cachorro latiu para um gato. O plantão na tevê. Romário poderia ser cortado da copa do mundo. Pereba estava alheio a tudo. -"Pereba. O lanche está pronto!" Gritou a mãe. -"Ah, tá. Obrigado, mamãe!" Ele pegou um pastel e saiu, nem ligando para a jarra de suco de groselha. A bicicleta Monark. Seis quadras. A casa do Cebola. Três garotos no quintal. O Cebola, o Arthur e o Dudu. Todos da turma do fundão. -"Fala, Pereba. Veio ajudar a montar pipas?" Perguntou o Cebola. Os outros riram. Adolescente ri de tudo. -"Cara, a Marluce me ligou. Me convidou pra ver uma peça teatral com ela!" Os meninos deixaram as pipas. -"Sério?? Você foi abduzido, Pereba? Tá tirando?" Ele ficou sério. -"Verdade, Cebola. Você deu meu número a ela. Sábado vai apresentar Eles não usam black tie, uma peça famosa! Ela não quer ir sozinha!" O riso foi geral. -"Desculpa, amigo. É muita areia pro seu caminhãozinho. A mina é papo cabeça, CDF das CDFS, já nasceu sabendo trigonometria! Além de tudo é linda!" Disse o Arthur, babando. -"Olha, só de ficar do lado dela, é um prêmio. Sugiro que você estude essa peça a fundo, caso ela peça sua opinião!" Pereba apontou o Dudu. -"Verdade, Dudu. Não posso passar atestado de burrice. Somos do fundão mas também temos massa cinzenta, oras bolas!" Pereba ouvia os conselhos, atentamente. -"Tome um banho caprichado. Nada de usar perfume forte, Perebinha!" Aconselhou o Cebola. -"Lave o tênis e tenha sempre camisinhas e balas de hortelã no bolso." Disse o Arthur. -"Não exagera, rei Arthur. Não vai rolar nem aperto de mãos. Cavalheiro. Seja educado, gentil e refinado, Pereba!" Concluiu o Dudu. No dia seguinte, o rapazote entrou na biblioteca do centro da cidade. Pegara dinheiro do cofrinho para o ônibus. -"Bom dia. Eles não usam black tie! Quero pesquisar, moça!" A funcionária da biblioteca olhou os catálogos e anotações. -" Bom dia. Sala dois, livro cento e dez. Enciclopédia Antares, página duzentos e vinte e três. Tenho jornais, se interessar?!" Pereba colocou os cadernos no balcão. -"Sim. Vou querer os jornais." A funcionária sorriu. -"Essa peça é famosa. Não poderei assistir!" Por duas horas ele leu textos e artigos sobre a peça teatral. Anotou algumas coisas que julgou importantes. -"Eles não usam black tie! Autor, Gianfrancesco Guarnieri. Escrita em 1955, estreou no teatro de Arena de São Paulo, em 1958. Gianfrancesco também foi o diretor e ator principal. No elenco original estavam também Flávio Migliaccio e Milton Gonçalves. A peça dava voz as minorias da periferia, da favela. Uma linguagem nova, proletária, com palavrões e improvisos. Um cenário simples, com caixotes em lugar de cadeiras. Uma mesa, um colchão. Um sucesso de crítica e bilheteria. Um sucesso que durou décadas em cartaz. Pereba tirou dez cópias xerox de um trecho da peça. Iria ler em casa. Queria surpreender Marluce. A escola. As meninas olhavam para ele. Pereba disfarçou e conferiu se o zíper da calça estava fechado. Os cochichos. O Arthur já tinha espalhado pra escola inteira que o casal incomum iria ao teatro. Renatão e Mingau se aproximaram. Eram os bonitões da oitava série. -"Como conseguiu sair com a Marluce, imundície? Nem o Everaldo conseguiu sair com ela, esterco de minhoca!" Pereba se protegeu de um cascudo na cabeça. -"É isso, Mingau. A gente está tentando há anos!" O sinal. Marluce acenou para ele. Dudu e Cebola chegaram atrasados, como sempre. A professora Mazé, de Língua Portuguesa, chegou com tudo, enchendo o quadro negro de matérias. Pereba não quis papo com o fofoqueiro do Arthur. Olhou para o Plínio, na quarta fileira. Era um cara legal, que sentava ao lado do Machado e do Elder. -"Hoje vamos ver o modernismo, a semana de 22! Vou dividir a sala em grupos e distribuir o material de estudo." Disse a professora. Até que ele gostou de estudar Tarsila do Amaral Mário de Andrade, Drummond e Guimarães Rosa! Fim das aulas. O fim de semana. Pereba mal dormiu. O tênis estava limpo e com talco cheiroso. Ele amarrou os cadarços de modo diferente, mais transado. Vasculhou o seu guarda roupas, atrás de uma camiseta maneira. Tinha camisetas do Mickey, algumas camisas sociais. -"Eureka. As camisetas da Fernanda!" Correu para o quarto da irmã. Felizmente, ela estava num retiro do grupo de jovens da igreja. Camisetas rosas, pinks, dos Backstreet Boys, Canção Nova, candidato político. -"Isso nunca!" Umas camisetas pretas nos cabides! Um parafuso vermelho sobre uma prancha e as letras RHCP?!? Era bonita e nova mas tinha cheiro de perfume feminino. Pereba lavou a camiseta no tanque. Rezou para que secasse até a tarde. Decidiu usar o aparelho de barbear do pai. A espuma de barbear. Quase cortou as sobrancelhas. Nenhuma barba. As espinhas sangrando. O álcool ardeu. Usou o sabonete líquido e o hidratante da mãe. Um banho no capricho. Passou a camisa da irmã. Olhou o relógio. A mãe ficou admirada com tanta dedicação. -"Nem pra missa você se arruma assim! É peça de teatro ou namoro?" Pereba sorriu. Iria se sentir um Tom Cruise ao lado de Marluce. Conferiu os drops, as balas no bolso. A mãe lhe deu uma nota de dez reais. -"Esse recorte do jornal dá desconto para estudantes. Eu recortei pra você, filho!" Ele a abraçou, agradecido. Resolveu ver a novela das seis com a mãe. Lá estava o Milton Gonçalves, num papel de escravo em novela de época. -" Ele estava no elenco original da peça Eles não usam black tie!" A mãe ficou orgulhosa com a sabedoria dele. Uma buzina. Um Opala amarelo. -"Marluce chegou. Tchau, mãe!" O cachorro latiu. O pai chegou do trabalho. Cumprimentou o pai da garota. Abraçou o filho. -"Gatinha, Pereba! Quero sete netos mas que puxem a mãe! Vai nessa, filho!" Cochichou o homem, fedendo a óleo. Ele enfiou uma nota de dinheiro no bolso da calça do rapaz. Marluce estava linda. Toda maquiada e num vestido tubinho. -"Pereba, esse é Aldo, meu padrasto! Uau.... camiseta do Red Hot Chilli Pepers! Amo essa banda!" Ele sorriu. Estava feliz. Passaram pelo centro da cidade. As luzes de neon, os prédios. O viaduto. O teatro imponente. O cartaz da peça. A fila de pessoas. As barracas de ambulantes. Os carros no estacionamento lotado. -"Retornarei daqui a três horas! Bom divertimento!" Aldo se despediu e se foi. Marluce pegou-o pelo braço. -"Vamos comprar os ingressos!" Ele sentiu o perfume gostoso da garota. -"Você está linda, Marluce! Sempre foi." Ela sorriu e olhou para os letreiros do teatro. -"Gentileza sua, amigo!" Pereba limpou as orelhas. Ela o chamou de amigo? Era um avanço e tanto. -" Pereba, você foi do ostracismo e insignificância para a amizade! Surreal, meu caro!" Pensou ele. -"Essa peça colocou o Guarnieri no hall dos grandes do teatro brasileiro!" Marluce olhava para os lados. Ele insistiu. -"Parece atual o enredo mas é de 1955! Incrível as falas e a atuação do Migliaccio." Tinha tanto domínio do assunto que tratava os atores pelo sobrenome. Marluce disse apenas um sim. Olhava para a multidão. Ele comprou um chocolate branco na lanchonete de entrada. -"Pra você, Marluce!" Ela o beijou no rosto. -"Que fofo. Obrigado noite ter vindo e me fazer companhia! Pelo jeito você estudou muito sobre a peça!" Ele corou. Os assentos. As poltronas macias. O grande palco e a cortina de veludo. As autoridades. O local tomado de espectadores. Os panfletos da peça. Pereba estava encantado. -"É uma favela. Ele fala alto mas não acorda os que estão dormindo no começo da peça. O terceiro ato é hilário!" Marluce o cutucou. -"Se ficar contando a peça irão nos expulsar!" Ele pode sentir o hálito de hortelã da garota, quando ela se aproximou. As mãos dele suando. O coração disparou. As luzes se apagaram. As cortinas se abriram. Uma peça interessante e com atores extraordinários. Aplausos efusivos. A rampa de saída. Marluce e Pereba de mãos dadas. Ela com medo de cair do salto. Ele torcendo para o salto quebrar e poder segurá-la. -"Linda peça, Marluce. Eu adorei!" A garota olhava para os lados. A multidão saindo do teatro. -"Também gostei, Perê. O Aldo deve estar esperando com o carro!" Ele gostou de ser chamado de Perê. Amigo e agora Perê?!! -"Estou com fome, Marluce. Que acha de comermos um podrão com Pepsi?" Ela se virou. A mão no peito dele. -"Não! Vamos comer pizza. O Aldo está vindo com a mamãe. Você vai com a gente, Perê!" Ele adorou a idéia. Colocou as duas mãos no bolso. -"Está ótimo. Você manda!" Ela o abraçou para atravessarem a rua. O Opala amarelo. A mãe de Marluce era igualmente linda. Pereba se deu conta que jamais usara faca nas refeições. Uma pizzaria elegante, com manobrista no estacionamento. Pereba divertiu a todos com seu jeito desastrado com os talheres. Marluce pediu e ele relembrou a peça teatral com detalhes. Eles passaram numa sorveteria, antes de irem pra casa. -"Não quer que Aldo o leve, Perê?" Ele se despediu do padastro e da mãe dela. -"Não precisa. São dez minutos até minha casa. Vinho tinto com pizza, eu adorei. Nunca tinha tomado vinho. Foi uma noite surreal. Não sei o que é surreal mas acho a palavra bonita, Marluce!" Ela apertou a mão dele. Olhos nos olhos. -"Estou surpresa pois não achava que você era tão divertido e culto." Ele corou. -"Existe vida inteligente no fundão da sala! Obrigado por essa noite inesquecível." Ele a puxou e a abraçou. Juntos. A lua por testemunha. -"Eu. Estou tonta pelo vinho!" Pereba colocou a mão na nuca da garota. Ela fechou os olhos. Ele a beijou. Marluce correspondeu. Um barulho de moto. Uma buzina. Marluce o soltou. O jardim. O portão. Um motoqueiro. Marluce foi até ele. Pereba ficou junto a porta de entrada da casa. O motoqueiro desceu da moto. Ele e Marluce se aproximaram. Ela chorava. -" O Plínio estava no teatro e nos seguiu até a pizzaria. Reatamos o namoro!" Pereba ergueu os ombros. Plínio estava chorando. -"Fui um idiota me afastando da Marluce. Pereba, valeu ter feito companhia pra minha pequena!" Plínio o cumprimentou. -"Muito obrigado, Perê! Boa noite!" Marluce piscou para ele. O casal entrou. Pereba sorriu. A pé, andando nas ruas vazias, foi pra casa. Chutava pedras e latas de refrigerante. Uma chuva fina. Teria que torcer a camiseta da irmã e pôr pra secar atrás da geladeira. -"RHCP quer dizer Red Hot Chilli Pepers?? Maneiro pacas!" Uma caminhada básica. -"Quem diria que o meu primeiro beijo seria com a Marluce?!? Nem os deuses previram isso!!!" Falava sozinho. O cachorro latiu. O portão de madeira. Tinha a cópia da porta da sala. O clarão da tevê. O pai sozinho, dormindo no sofá. Altas Horas na tevê. Pereba torceu a camiseta e estendeu atrás da geladeira. Um banho e cama. Resolveu se afastar da turma do fundão e mudou para uma carteira no meio da sala. O interesse cresceu e ele passou a devorar livros, melhorando muito as notas. Não contou nada a ninguém sobre aquela noite. Marluce mudou de escola. Ele nunca mais a viu. FIM