“Orelhas e Unhas”
17.04.2018
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Foram passar um final de semana na fazenda de um colega da escola, no interior do estado. Era o local de propriedade da sua tia-avó, figura proeminente e importante na sociedade. Era Condessa!
Seu amigo sobrinho-neto , tinha um Ford Corcel branco, 1971, todo equipado, "carro de boy", como se falava na época, com rodas de magnésio "tala larga", direção esportiva e o painel cheio de reloginhos que marcavam não sei o quê. Nesse carro, foram em três amigos para o passeio. Saíram da capital após o almoço e chegaram no final da tarde de uma sexta-feira de verão.
A entrada da fazenda era majestosa, imponente e bonita. Formada por estrada larga de chão batido, ladeada por colunas de eucaliptos altos que balançavam suas folhas ao sabor do vento farfalhando o seu som característico. Sensação agradável e relaxante.
Passaram pela casa do administrador: uma mansão. E seguiram para a sede da fazenda.
A casa principal era simplesmente belíssima e ali ficara hospedada a rainha da Inglaterra quando em visita ao Brasil!
Tratava-se de um imponente chalé em estilo normando, com telhados altos e inclinados. Era totalmente estruturado sobre pesadas vigas e pilares de madeira de lei entalhada, elevada cerca de dois metros acima do solo para abrigar o porão. Em toda a sua volta tinha uma hera, trepadeira, bem aparada e multicolorida cobrindo as paredes de tijolos maciços. A entrada se fazia por escadarias largas que davam acesso a uma enorme varanda e ao portal principal de acesso à casa, alto e esguio, todo em madeira nobre detalhadamente trabalhada. Um enorme lago a ladeava, com uma bela piscina com uma fonte em mármore de Carrara aos fundos. Tinha também um haras, com seus pastos divididos com cercas brancas, nos quais pastavam lindos cavalos de raça pura, que ao longe, observavam a chegada das visitas. Ele e o amigo ficaram maravilhados com o que viram.
Desceram do carro alegres, falantes e brincalhões como devem ser os jovens de 17,18 anos - sua idade na época. Viram, então, ao pé da escada uma senhora, que mais parecia uma estátua, pois tinha olhos de coruja, enormes e fixos, pele branquíssima, cabelos esticados para trás, em coque e usava um vestido largo até os tornozelos, com um par de Vulcabrás negros e meias soquetes brancas : a Governanta da casa, deduziu ele, sem graça como a função requer, mas enérgica! "Vai ser um saco aqui, com essa mulher pegando no pé da gente" - pensou.
Dito e feito! Ela os chamou para a grande varanda na entrada da casa, que continha móveis de junco fofamente estofados, dando aos visitantes vontade de pular neles, e começou a falar em voz baixa e firme:
- Aqui temos algumas regras e normas básicas de conduta e convivência que devem ser respeitadas! - e a enumerá-las, tais como: era proibido caçar, pescar e andar a cavalo; cumprir religiosamente os horários das refeições, porque a cozinha fechava e poderiam ficar sem alimentação; atentar ao badalar do sino, que tocaria por três vezes: três badaladas, 15 min antes do horário de ser servida a refeição; duas badaladas, dez minutos antes e uma badalada longa no horário!
O sobrinho-neto subira as escadas resmungando, dizendo ser ela um "saco", uma cópia da tia-avó, fora treinada por ela, porque trabalhava na fazenda desde menina... Enfim, era a boca, os olhos e os ouvidos da Condessa.
Instalaram-se os três em um quarto gigantesco, tomaram banho, vestiram-se e desceram para o jantar, pois já tocara a segunda badalada do sino.
No pé da escada, junto à entrada do salão das refeições, aguardava-os a imponente Coruja Inspetora Chefe , como a haviam apelidado. Com o seu olhar penetrante e duro, parou-os, inclusive ao sobrinho-neto, pedindo-lhes que mostrassem para vistoria: unhas, orelhas, narizes, roupas, as camisas dentro das calças , sapatos e cabelos. Fez uma verdadeira inspeção nos meninos, como os chamava, liberando-os, ou melhor, libertando-os para entrarem no salão. "Seria assim em todas as refeições?", refletiu ele aborrecido.
Entraram no salão e ele ficou maravilhado com a imponência e pompa do local. Era comprido e largo, com pé direito alto, portando lustres de cristal pendentes e mesa para muitas pessoas, avaliou que mais de cinquenta caberiam sentadas. A cadeira da Condessa, com espaldar alto, ficava na cabeceira oposta à entrada, dominando todo o ambiente. Um trono! Atrás dela, a entrada e saída da copa, tendo como anteparo, um lindo biombo chinês, ladeado por dois garçons, um de cada lado, impecavelmente vestidos e com luvas brancas, parados como duas estátuas. "Devem também ser vistoriados pela Inspetora Chefe" , pensou ele. Do lado oposto ao trono, sobre o portal de entrada do salão, havia um lindo quadro de Cândido Portinari, retratando um filhote de cervo em floresta colorida e limpa, característica da sua pintura. Magnifico.
Esperaram em pé a chegada da Senhora Condessa, que veio com andar claudicante, bengala, sorrindo para todos, sentando-se em seu lugar principal. Era simpática, mas de postura enérgica e firme. Chamou o sobrinho-neto, dando-lhe um beijo carinhoso, pedindo-lhe que sentasse ao seu lado direito, pois naquela noite não haveria mulheres à mesa. O costume era que, durante as refeições, os homens sentassem à direita da condessa em ordem decrescente de idade, e à esquerda, na mesma ordem, as mulheres - regra também já ditada lá na chegada pela Coruja.
Por ser alguns dias mais velho do outro amigo, sentou-se do lado esquerdo, próximo à condessa, e o amigo, ao lado do sobrinho-neto, à direita. Eram os quatro, somente naquela noite.
Iniciou-se o jantar. Em sua frente, havia copos de cristal de diversos tamanhos, vários pratos em louça fina e inúmeros talheres de prata: tudo identificado com as iniciais do nome da Condessa em monogramas dourados. "Seria um banquete", pensou!
Um dos garçons chegou pelo seu lado direito, servido à francesa, abaixou-se e falou em tom baixo e educado junto ao seu ouvido:
- O que o senhor gostaria de beber? - surpreso, demorou a responder, mas sem perder a postura, falou:
- O que tem ?
O garçom começou a desfiar uma interminável lista: água, suco disso e daquilo, este e aquele refrigerante, cerveja, vinho... Ao final, esperou a resposta parado ali ao seu lado. Perdido na quantidade de opções apresentada e envergonhado, não ousou pedir que repetisse a enorme lista, falou:
- Água tá bom!
Seguiu o lauto jantar, com a condessa muito simpática e participativa da conversa, perguntando aos novos hóspedes seus nomes completos, o que faziam seus pais, etc. Somente ela conduzia a conversa - outra norma da casa.
Terminada a refeição, foram servidos os licores e o café, na maravilhosa varanda da casa, tudo com muita pompa e circunstância. Sentiram-se como reis.
No dia seguinte, depois da vistoria e do café da manhã nobilíssimo, foram com o sobrinho-neto conhecer a fazenda. Era pessoa bem simples e tranquila, sem nenhuma afetação, pelo contrário, desbocado e brincava com todos da propriedade usando um palavreado nada nobre. Os amigos o conheciam muito bem da escola, mas que não soubessem dessa sua faceta a tia e a Inspetora Chefe!
Voltaram quase na hora do almoço, passando pela piscina. Resolveram ele e o amigo dar um mergulho, pois estava um forte calor . O sobrinho-neto disse que estava quase na hora do almoço e não iria nadar, pois não queria criar problemas. Pediu -lhes para que não se atrasassem e foi até a sede. Os dois ficaram se refrescando na piscina.
Então bléim... bléim...bléim, as três badaladas do sino de quinze minutos para servir o almoço. "Temos ainda um tempinho, vamos dar mais um mergulho" ,disse ao amigo e mergulharam novamente na água refrescante e fria. O tempo correu e bléim... bléim, dez minutos!
Saíram e subiram em disparada a escada para o quarto, banho a jato, troca de roupa desesperada e bléeeeiiiim... a derradeira e longa badalada soou. Almoço servido! Desceram ainda molhados, camisas fora das calças, cabelos despenteados e lá estava ela: a Inspetora Chefe os aguardando.
-Estamos fritos! - disse ao amigo. Mas ela, ao invés de fazer a vistoria habitual, ajudou-os a se recompor. Não acreditaram!
-Vamos, vamos rápido meninos! - disse-lhes, ajeitando a camisa de um, o cabelo de outro e pronto, estavam liberados. Afinal, a Coruja não era tão ruim assim.
Seguiram em direção ao salão de onde se ouvia muita animação e alegria, com conversas e risadas altas. O amigo esperou um pouco deixando-o entrar primeiro na sala de refeições. Pronto. Levariam a bronca ! Todos se voltaram para os atrasados - a família do amigo sobrinho-neto tinha chegado: pai, mãe e irmã que sorriam para eles. Ficaram estáticos, quando escutam a Condessa lhes perguntar de forma carinhosa:
- Chi è il più vecchio? - o amigo rapidamente responde:
-Ele! -apontando-o. A Condessa olha e lhe diz:
- Viene qui, bel ragazzo, senta qui dalla mio lado de castigo, viene, viene - disse-lhe em seu ítalo-português.
Ficou desconcertado e sem graça. Vendo-o assim, todos riram com força, descontraindo-o. Sentou-se ao lado da Condessa de castigo. Ao amigo, a condessa disse que amanhã seria ele a sentar-se ao seu lado, de castigo também. A risada foi geral.
Ficaram amigos da Senhora Condessa. Ela, após esse fato, tornou as formalidades mais amenas, assim como a Inspetora Chefe, que mudou de postura, fazendo a vistoria de forma mais branda.
Parece que foram aceitos pela corte no final de semana real. Foi excelente!
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