Meus Quatro Maridos
Prefácio
Caro leitor,
O conto “Meus Quatro Maridos” foi inspirado em acontecimentos reais, mas não deixa de ser uma narrativa da literatura ficcionista. Não é uma biografia. Alguns personagens foram criados sem referências às pessoas do meu convívio. Ao escrever as páginas que se seguem, a minha intenção foi de contar, por meio de uma personagem e com textos simples, algumas situações que vivi no mar, nas montanhas, na literatura e na zona rural tendo, por mais de meio século, o apoio e incentivo da minha esposa e filhos.
Autor
Pela fresta da cortina, ainda deitada, eu assistia a claridade do sol surgindo. Lentamente a escuridão da noite se despedia cedendo espaço ao alvorecer de mais um dia da primavera. Virei calmamente para o lado, olhei o celular em cima da mesinha. Faltavam alguns minutos para o alarme soar. Finalmente, o dia do mês que eu mais gostava havia chegado.
Às seis e cinquenta, nem um minuto a mais ou a menos, o Pedrinho abrirá a porta da sala e, como de costume, perguntará: “Vó, o nosso café já está pronto? Não tenho muito tempo”.
Em seguida, mostrar-me-á a agenda do celular com seus diversos compromissos de trabalho.
Dos meus netos, ele é o que mais puxou o avô. Mesma altura, cerca de um metro e sessenta e cinco, pernas musculosas, cabelos escuros, penteados para lado. Além da semelhança física, há uma enorme paridade nas suas atitudes e no modo de pensar com as do Samuel. Até o óculos é bem parecido com o que o avô usava, ele diz que é estilo John Lennon.
Eu adoro quando ele, nas conversas, ressalta que não há como viver sem planejamento. Que é preciso fazer acontecer e não esperar acontecer. Que não existe destino, o futuro é o resultado das nossas ações no presente e que, na vida, os acasos são menos do que cinco por cento dos acontecimentos.
E quando lhe perguntam: “Pedro, essas suas convicções têm origem nas leituras de quais filósofos?”
“Em nenhum”. “Estão nos textos escritos pelo meu avô Sam, os quais li todos e concordo com os conceitos que ele seguia. Penso como ele pensava: A vida é curta para ser pequena. Temos que planejar as metas e agir de modo a alcançá-las”.
No momento em que ouvi o som de uma locomotiva, instintivamente sentei na lateral da cama, parei o alarme e li na parte superior da tela do celular “5:45, quarta-feira, 15 de setembro de 2048”.
Quinze, o meu dia favorito. Era o dia de tomar café com o Pedrinho na varanda do apartamento. Um evento que eu adorava e que, há tempos acontecia sempre no décimo quinto dia de cada mês.
Quando adolescente, o Pedrinho não quis prestar concurso para seguir a carreira militar, como fez o pai, o tio e o avô. Fez vestibular e graduou-se em agronomia.
Apesar de ter somente vinte e oito anos, ele já é um engenheiro agrônomo de destaque no segmento do agronegócio. Presta assessoria técnica às grandes empresas na implantação de projetos ligados à agricultura orgânica em todo o Brasil.
Ao firmar os pés no piso, para levantar-me e seguir em direção ao toalete, olhei novamente a data no celular. Sim, quinze de setembro.
É isso! Hoje é um dia importante para mim, além do café com o meu neto, se não estou errando nas contas, há setenta anos casei-me com Samuel. Uma data que, naturalmente, não faz parte das comemorações e lembranças dos nossos descendentes, mas que me traz saudades e recordações maravilhosas.
- Dona Bia, bom dia! Dormiu bem? Hoje é o dia do café com o Pedrinho. – de modo carinhoso, a minha amiga e ajudante Eliane cumprimentou-me da cozinha.
Por recomendações dos meus filhos e netos, desde o ano passado ou retrasado, não lembro, Eliane passou a dormir no apartamento para fazer-me companhia.
- Sim, querida. Estou ótima. Bom dia! – repetindo as mesmas palavras de sempre, respondi. Entretanto, diferente dos outros dias, não estava me sentindo muito bem. Continuei sentada.
Há tempos aprendi a conviver com o sentimento da saudade. Mas hoje acordei com o pensamento voltado ao passado e não aos momentos vindouros.
Algo diferente está acontecendo comigo. Diversos fleches do que vivi estão se destacando nos meus pensamentos.
Ouvindo muito longe o barulho de louças sendo arrumadas à mesa, veio-me à mente à noite de oito de abril de 1972, lembro-me perfeitamente daquele sábado, quando respondi “sim, eu quero”, à pergunta “quer namorar comigo”, que me fez Samuel, até então um amigo que morava na casa ao lado da minha.
Aliviando o peso do corpo nos pés, ainda sentada, comecei a assistir pela fresta da cortina, no esplendor de mais uma manhã primaveril, as imagens dos acontecimentos pretéritos dos meus noventa e um anos de vida, dos quais quase setenta ao lado de Sam.
Eu e Sam
Agora reflete, na fresta da janela, a imagem das calçadas onde brincávamos quando crianças...
Nada nos diferenciava dos meninos e meninas da classe média baixa dos subúrbios do Rio de Janeiro dos anos sessenta. Vizinhos e colegas das brincadeiras de rua, eu e Samuel crescemos juntos na Ilha do Governador.
Morávamos numa vila de casas geminadas à Rua Mileto Maciel. Estudamos no Colégio Estadual Prefeito Mendes de Moraes.
De todos os garotos da vizinhança, Sam se destacava por ser muito estudioso e perseverante nas coisas que queria.
Quando ele estava para concluir o “ginásio”, colocou na cabeça que queria ser oficial da Aeronáutica ou da Marinha. Além de se identificar com a vida militar, Sam sabia que a carreira nas Forças Armadas lhe permitiria uma ascensão social.
Desde muito cedo, Samuel seguia a ideia de que é obrigação dos pais proporcionar as condições necessárias para que os filhos os superem nos diversos segmentos da vida. E aos filhos, a obrigação de, seguindo os preceitos da moral e da ética, alcançarem patamares mais elevados que seus genitores. Só assim, ele acreditava, a pobreza seria atenuada na sociedade humana.
Então, com a vontade de alcançar voos mais altos que os de seus pais e pares, ele dedicou-se com afinco aos estudos. Ao terminar o curso ginasial, fez concurso e ingressou no Colégio Naval.
Como éramos amigos desde criança, Sam convidou-me para o tradicional baile dos calouros que naquela época marcava o início da carreira dos novos alunos na Marinha.
Foi naquele baile, o primeiro da minha vida, que começamos a namorar. Na época, eu tinha quatorze anos e ele dezessete. Desde daquele sábado, oito de abril de mil novecentos e setenta e dois, ficamos juntos até o dia de sua finitude.
Planejamos o nosso casamento em novembro, talvez dezembro, de 1977, quando Sam estava terminando o curso. A ideia era começarmos a nossa vida conjugal com o início da carreira profissional dele na Marinha.
Cerca de dois ou três meses após se formar, Samuel, então Guarda Marinha, partiu no Navio Escola para a viagem de instrução.
Como o navio estaria de volta ao porto do Rio de Janeiro no final de agosto, escolhemos a data de quinze de setembro de 1978, uma sexta-feira, para nos casarmos.
Eu, sozinha e com apenas vinte anos, tive que tomar todas as providências necessárias à legalidade do nosso matrimônio e à realização da cerimônia religiosa.
Ainda guardo a carta enviada por Sam informando-me que havia recebido o “convite” do nosso casamento quando o navio tinha atracado em Londres. Li e reli algumas vezes aquela carta. No texto, percebia-se claramente o seu entusiasmo e agradecimento por eu estar cuidando de todos os detalhes da nossa futura união. Durante anos, sempre que conversávamos sobre esse assunto, ele dizia: “Amor, se você gostou do meu texto, imagino que vai adorar ler “Felicidade Conjugal” de Liev Tolstoi”.
Durante toda a nossa convivência, li diversos romances russos, por ele indicados, mas, em momento algum interessei-me por “Felicidade Conjugal”, um romance maravilhoso que só vim a ler cerca de dois anos depois da partida do meu marido.
Na cidade de Salvador, para onde fomos logo depois que nos casamos, moramos num local maravilhoso, chamado “Praia de Inema”.
Lá vivemos em lua de mel por dois anos. Lá eu fiquei grávida do nosso primeiro filho. Lá, segundo Sam, eu tornei-me a gestante mais linda do nosso planeta. Enquanto viveu, ele manteve uma foto minha desse período em sua estante.
O segundo filho chegou, de certo modo, bem antes do que havíamos planejado. Lembro-me da apreensão em que fiquei para dar a notícia ao Samuel. Na época estávamos morando no Rio de Janeiro. O nosso primogênito iria completar seis meses quando tive os primeiros sinais da nova gravidez. Para minha total surpresa, pois Sam não conseguia viver sem um planejamento para os dias por vir, deu pulos de felicidades quando lhe disse que seria pai novamente.
Depois de Salvador, moramos em muitas outras cidades no Brasil e no exterior. Vivemos com as particularidades que vivem normalmente os casais em que o marido é da Marinha.
Aproveitando a idade escolar dos nossos filhos, voltei a estudar e formei-me professora. Tive o privilégio de trabalhar como educadora.
E assim, a vida foi passando. Os filhos cresceram, casaram e os netos chegaram.
Como Sam dizia: “o tempo não passa, não muda. O sol nasce e se põe repetidamente. O Tempo é eterno. Nós é que passamos e envelhecemos. Somos finitos”.
De uns anos para cá, passei a entender o que o meu marido queria dizer sobre a eternidade do tempo. Às vezes, parece-me que o tempo realmente está parado. Tudo passa, exceto o tempo.
Enquanto sigo em direção à minha finitude, vejo sem nenhuma alteração a repetição dos dias e das noites.
Sam passou e o tempo ficou.
Ele viveu intensamente os seus oitenta e quatro anos. Planejou tudo que queria alcançar. Executou todos os seus planejamentos. E mudou quando precisou ou quis mudar.
Seguiu o conceito de que nada na vida é para sempre. Pra sempre, Sam dizia, somente as mudanças. A mudança é inerente aos seres vivos.
E, realmente, Samuel mudou algumas vezes durante a sua eternidade. Tive o privilégio de ter quatro maridos em um único casamento. Fui esposa de “um marinheiro”, depois de “um montanhista”, depois de “um contista” e fiquei viúva de “um agricultor rural”.
Eu e o Marinheiro
“Base Naval de Aratu”, com certa dificuldade, leio na imagem que acaba de refletir na fresta da cortina...
Foi naquela base militar que iniciei a minha vida, digamos, de esposa de um oficial da Marinha. Depois de Aratu, eu, Samuel e os nossos filhos moramos em diversas outras vilas militares da Marinha. Mas lá tive o meu primeiro contato informal com pessoas e assuntos ligados à Marinha.
Em Aratu, Sam, no posto de segundo tenente, embarcou na “Corveta Purus”. Muitas foram as missões que ele participou e, também, muitas foram as nossas conversas sobre as dificuldades que ele, na época no início da carreira, teve que enfrentar nas suas permanências no mar.
Daquela época, não esqueço o relato que Sam me fez quando voltou de uma missão de salvamento no mar.
A Corveta tinha sido acionada para prestar ajuda aos tripulantes de um navio mercante, se não me falha a memória de nome “Cabo Orange”, que estava navegando no litoral norte do Brasil quando ocorreu um incêndio a bordo.
Após cerca de trinta horas de navegação, a “Purus” chegou na área do sinistro. Os militares da Corveta já haviam sido informados que os tripulantes do mercante tinham abandonado o navio, exceto um marinheiro que permaneceu a bordo tentando disparar o sistema fixo de “CO2”.
Sam, que desde seu ingresso na Escola Naval, onde estudou após concluir o curso do Colégio Naval, gostava e participava de esportes radicais, se voluntariou para resgatar o marujo do mercante.
Devido a irradiação do calor e a propagação da fumaça, a Corveta não pôde se aproximar do navio em chama. Então, Samuel e um sargento seguiram para o sinistrado a bordo de um pequeno bote inflável.
Confidenciou-me que ele e o companheiro ficaram apavorados durante a travessia, com a possibilidade de sofrem um ataque dos tubarões que os perseguiam ao lado do bote. Segundo Sam, era normal ter peixes de grande porte acompanhando os navios, pois eles se alimentavam dos restos de comidas lançados ao mar pelo pessoal da cozinha.
Outro momento estressante naquele salvamento, contou-me Sam, foi quando pararam o bote a cerca de dois metros da embarcação e ele, o meu marido, com apoio de cordas teve que “escalar” o costado do navio, um “paredão de aço” de quase trinta metros com a chapa ainda bastante quente. E embaixo um cardume de tubarões famintos esperando resto de alimentos.
Um pequeno erro na ascensão do costado que o levasse a cair no mar, seria fatal.
Apesar do esforço e dedicação dos militares da Corveta Purus, Sam não conseguiu chegar a tempo de salvar o marujo. Já o encontrou sem vida na praça de máquinas do navio sinistrado.
Depois do “batismo” no salvamento do Cabo Orange, ao longo de sua carreira na Marinha, Samuel participou de muitas outras fainas nas quais colocou em risco a própria vida.
Sempre que ele retornava do mar, passávamos à noite namorando e conversando.
Contou-me com detalhes as dificuldades que enfrentou para combater o incêndio ocorrido na Praça de Turbinas da Fragata Liberal, quando o navio retornava de uma missão em apoio à guarnição da Ilha da Trindade na semana do Natal. Naquela fragata, ele trabalhou por quase oito anos.
Quando servindo na Fragata Niterói, por mais estranho que possa parecer, combateu um incêndio na frigorifica do navio. Utilizando roupas especiais e máscara com respirador de oxigênio, foi o primeiro homem a entrar na câmara frigorífica para debelar o fogo causado por caixas de papelão encostadas nas resistências do sistema de degelo.
Das situações adversas, por ele enfrentadas no mar, houve uma que, vez por outra, lhe voltava aos pensamentos e o deixava sem dormir. Foi quando estava no cargo de Comandante da Corveta Solimões.
Durante uma missão de patrulha do mar territorial, que na época, era adotado pelo Brasil como de duzentas milhas náuticas, devido a um vazamento de combustível, ocorreu um incêndio de grandes proporções na praça de máquinas do navio.
Enquanto a equipe (cerca de dez homens) tentava controlar e extinguir o incêndio, os demais militares de bordo, acompanhando o oficial médico, correram para os botes salva-vidas na intenção de abandonarem o navio.
Sam, que conhecia como a palma de sua mão as instalações daquela classe de navio e sabendo que estavam numa área afastada das rotas marítimas, utilizando um megafone portátil, num tom de voz adequado, sem gritar, mas com a postura necessária àquela situação, determinou que todos continuassem a bordo. Ficassem calmos e longe das áreas de perigo, pois ele e a equipe de controle de avarias iriam recuperar o navio.
E, olhando nos olhos dos tripulantes, disse: “se vocês querem continuar vivos fiquem a bordo comigo”.
Cinco ou seis dias depois do incêndio, eu, meus filhos e militares da Base Naval de Val de Cães estávamos no cais aplaudindo os tripulantes da Corveta Solimões que, apesar das avarias e partes destruídas pelo fogo, estava, sob o Comando de Samuel, atracando ao píer.
Como habitual na vida de uma mulher casada com um marinheiro, passei muitos dias sozinha, cuidando de tudo. Desses períodos de afastamentos, um dos quais marcou-me bastante foi quando Sam serviu no Navio Escola Custódio de Melo.
Naquele navio, ele fez duas viagens seguidas pelos continentes Americano, Africano e Europeu, ficando dezenove meses longe de casa.
Para manter as crianças, na época com dois e três anos, em contato com o pai, as nossas correspondências eram por meio de fitas cassetes com áudios gravados. Mas, mesmo assim, ainda lembro perfeitamente que quando Samuel retornou da viagem, o nosso filho caçula demorou alguns dias para se aproximar dele. Sam teve que aos poucos reconquistá-lo.
Foi naquele período que fiz a minha primeira viagem ao exterior. Para atenuar a saudade do meu marido, deixei as crianças aos cuidados da minha mãe e viajei para Europa a fim de encontrar-me com o Sam. Lá vivi momentos maravilhosos de pura felicidade, uma nova lua de mel.
Das muitas lembranças e saudades daquela minha primeira ida à Europa, não esqueço do ocorrido quando do primeiro encontro com Sam.
Na programação de viagem daquele ano, estava previsto que o navio Custódio de Melo atracaria e permaneceria quase uma semana no Porto de Pireus. Assim, acertamos com antecedência que nos encontraríamos na Grécia.
O combinado era Sam ir para o hotel em Atenas, onde eu o esperaria.
Na tarde do dia do encontro, não lembro mais a data, eu me arrumei, procurando tornar-me a mulher mais linda do mundo, e desci para o hall do hotel. Em pé, um pouco afastada da porta de entrada, vi quando Sam chegou. Estava um pouco afoito, olhando para os muitos turistas que ali se encontravam. Ele tentava me localizar. Devido a emoção de vê-lo, fiquei estática admirando-o. Ele passou por mim duas ou três vezes e não me reconheceu. Em seguida, demostrando certa aflição, dirigiu-se ao balcão de recepção e lá ficou em pé esperando ser atendido.
Aproximei-me calmamente e perguntei em inglês: “O senhor está procurando por alguém?”
No instante seguinte, um abraço bem apertado e um longo beijo...
Sim, há uma explicação lógica para aquele ocorrido. Sempre usei o cabelo num comprimento tal que as pontas ficavam um pouco acima dos ombros. E, desde o começo do nossos namoro, Samuel elogiava o meu visual com aquele corte. Mas, alguns dias antes da minha viagem, fui ao salão e mudei drasticamente o visual. Adotei o corte “Joãozinho” bem rente ao couro cabeludo e inovei no meu tipo de roupa. Por isso, Sam não me reconheceu de imediato.
Na Marinha, Samuel exerceu funções, tanto na parte operacional dos navios, navegação e manobras táticas de combate, como no setor de manutenção e condução das máquinas e motores propulsores. Era comum ele retornar ao navio dias antes de iniciar as viagens, pois como responsável pelo setor de propulsão, tinha que realizar os “pre-sail checklis”, as verificações antes de seguirem para o mar.
Samuel contou-me que uma vez estava realizando um desses testes na véspera do navio seguir viagem, quando foi detectado um problema no sistema de lubrificação da engrenagem redutora do motor de propulsão. Então, para o navio iniciar a viagem, era necessário consertar a bomba de lubrificante que ficava localizada no fundo do porão da praça de máquinas. E isso levaria uns dois dias, pois seria preciso retirar uma série de tubos e equipamentos de modo a permitir o acesso à bomba com defeito.
Depois de analisar o problema e olhar cuidadosamente o local onde o bomba se encontrava, Sam decidiu que tentaria chegar ao fundo do porão passando pelos pequenos espaços entre os equipamentos, sem a necessidade de retirá-los.
E assim foi feito. Ele permaneceu, deitado no fundo da praça de máquinas, sem espaço para se mexer, trocando o selo de vedação da bomba por cerca de doze horas seguidas. Apesar de ser magro, relatou-me que chegou a ficar preso nas ferragem dos equipamentos por duas vezes. O navio, se não estou enganada chamava-se Corveta Inhaúma, seguiu para o mar com apenas uma hora de atraso.
Muitas são as imagens que vejo de Sam na Marinha. Ele dedicou-se integralmente a sua profissão. Por mais de trinta e cinco anos foi, para mim, um exemplo de marinheiro. Além de todos os cursos de carreiras, realizou muitos outros para manter-se capacitado e atualizado. Fez cursos com equivalências ao Mestrado e ao Doutorado. Durante a carreira, foi muitas vezes aluno e outras instrutor.
Na carreira alcançou a marca de mais de mil dias de mar e assumiu a função de Comando por diversas vezes. Falava-me constantemente do seu orgulho de ter sido Comandante do Centro de Adestramento Almirante Marques de Leão e do Colégio Naval. Não conheceu um oficial, ele me dizia, que tenha tido o privilégio de ter sido Comandante destas duas Organizações de referência na área de ensino da Marinha.
Nunca esmoreceu frente aos desafios profissionais. Quando esperava a indicação para ser o Adido Naval em Portugal, foi designado Adido na Rússia. Imediatamente buscou se capacitar para exercer a função num país longínquo e bem distante culturalmente do Brasil.
Na mesma semana em que recebeu a notícia de sua nomeação para trabalhar na Embaixada do Brasil em Moscou, conseguiu nos matricular num curso intensivo do idioma russo no Centro de Estudos de Pessoal do Exército. Em seis meses, ele e eu já líamos e escrevíamos em cirílico.
Chegamos em Moscou entendendo e falando o básico do idioma daquele país. Lá permanecemos por mais de dois anos e tivemos a oportunidade de aperfeiçoar o aprendizado da língua russa.
Ao meu marido, o marinheiro Sam, às minhas eternas saudades.
Eu e o Montanhista
Clara como a luz do sol, a imagem na fresta da janela, neste exato momento, reflete os degraus da via ferrata da travessia Petrópolis-Teresópolis...
“Do mar para as montanhas”, repetia Sam quando deixou o serviço ativo da Marinha.
O seu primeiro contato com atividades de montanha foi quando, ainda jovem, aluno da Escola Naval, participou do Grêmio de Alpinismo.
Não tendo mais os compromissos das longas viagens e missões na Marinha, ele utilizou parte do seu tempo para estudar, fazer cursos teóricos e práticos, de modo a se capacitar adequadamente às atividades de escaladas e trekkings.
Na época, eu também já havia encerrado os compromissos profissionais. E com os filhos casados e morando distantes, interessei-me pelas atividades de montanhas. Não por escaladas, queria participar dos trekkings e acampamentos.
Depois de alguns treinos, aceitei a proposta de Samuel de fazermos a tradicional travessia Petrópolis-Teresópolis na Serra dos Órgãos, aqui no Rio de Janeiro. Um percurso de três dias de caminhada subindo e descendo cinco montanhas, na altitude média de dois mil metros.
Mesmo tendo assistido várias vezes no “YouTube” de como proceder nos três principais obstáculos da jornada, praticamente congelei quando chegamos no “elevador”, uma escada vertical, construída com degraus de vergalhão fixados na rocha, num paredão de cinquenta metros de altura. Os montanhistas chamam este tipo escada de “via ferrata”.
Até hoje não sei como consegui vencer aquele obstáculo.
Com relação aos outros dois pontos difíceis da travessia, o “cavalinho” e o “mergulho”, senti medo ao atravessá-los, mas nada tão assustador como o “elevador”.
Fiquei contente por ter concluído, já quase na terceira idade, uma das mais lindas e tradicionais travessias de montanhas do Brasil.
Nos anos que se seguiram, eu e o Sam realizamos muitos trekkings no Brasil e nos Andes.
Na Chapada da Diamantina, adorei as plantas nativas e a oportunidade de pernoitar na residência de uma família de nativos.
Em Goiás, no Parque dos Veadeiros, fiquei assustada quando à noite o nosso acampamento foi literalmente invadido por lobos Guará.
Bastante peculiar foi a Trilha do Rio do Boi que fizemos no Cânion do Itaimbezinho em Aparados da Serra, no Rio Grande do Sul. Lá, tivemos que usar polainas especiais para proteção contra ataques de cobras. Caminhamos pelo leito do rio por quase seis horas.
Nas vezes em que fomos ao Parque Nacional de Itatiaia, aproveitávamos para algumas esticadas com pernoite em Visconde de Mauá.
Na Serra do Caparaó, na divisa dos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, tive o privilégio de assistir, ao lado de Sam, o nascer do sol do cume do Pico da Bandeira, o terceiro ponto mais alto do Brasil.
Quando estávamos na nossa casa em Guapimirim, utilizávamos a Serra dos Órgãos como campo de treinamento. Muitas vezes fui com o meu marido à Pedra do Sino, ao Mirante do Inferno, à trilha do Dedo de Deus...
Com o passar do tempo, Samuel passou a praticar com afinco escaladas, trekkings, corridas de montanhas e ascensão de altas montanhas.
Apesar de cumprir uma programação intensa de treinos e atividades durante o ano, ele nunca quis se tornar um profissional naquele tipo de esporte. Sempre atuou como amador.
De tanto treinar em Guapimirim e Teresópolis, Sam adquiriu uma boa experiência nas montanhas e travessias da Serra dos Órgãos. Lá ele escalou o “Dedo de Deus”, o “Dedo de Nossa Senhora”, o “Escalavrado”, o “Garrafão”, a “Cabeça de Peixe”, o “Santo Antônio e a “Agulha do Diabo”. E fez todas ou quase todas as travessias.
Sam, na faixa etária dos sessenta anos, alcançou marcas impressionantes na travessia Petrópolis-Teresópolis. Completou o percurso total de cerca de trinta quilômetros, com cinco montanhas, em três dias, depois em dois dias, depois em um dia, e por fim, conseguiu realizar todo o percurso em oito horas e quatorze minutos.
De todas as aventuras naquela Serra, ele e um amigo, fizeram algo que nunca tomei conhecimento se foi realizado por outros montanhistas. Eles planejaram executar a travessia, saindo do portão de Teresópolis, chegar em Petrópolis e retornar à Teresópolis, num “bate e volta”, com apenas algumas paradas técnicas de no máximo cinco minutos.
Conseguiram realizar a aventura em vinte e três horas e quarenta minutos em atividades ininterruptas. Percorreram um total de sessenta quilômetros e ultrapassaram dez montanhas.
Quando estávamos neste apartamento, aqui na Barra da Tijuca, treinávamos na praia com o visual magnífico da Pedra da Gávea. Foi de tanto admirar aquele ícone da Cidade Maravilhosa que concordei em subi-lo com o Samuel.
Não foi muito fácil, tive certa dificuldade na parte da Carrasqueira, um paredão quase na vertical, de mais ou menos quarenta metros de altura. Durante a ascensão daquele obstáculo, o meu pé prendeu em uma fenda e tive que contar com a experiência do meu marido para ajudar-me.
Na minha opinião, o visual mais lindo do Rio é obtido do cume da Gávea. Foi naquela aventura que utilizei pela primeira vez uma técnica de escalada. Desci a Carrasqueira de rapel ao lado de Sam.
Ele gostava muito de treinar na Pedra da Gávea. Conseguia, sozinho, chegar ao cume em menos de duas horas.
Foi num final de tarde, quando estávamos terminando uma corrida na areia da praia, que Samuel iniciou um papo sobre a sua vontade de participar de expedições nos Andes, ascender altas montanhas. A ideia dele era treinarmos mais forte considerando que eu poderia fazer trekking naquela região gelada.
Em pouco menos de um ano ele se preparou, planejou e começou a participar de atividade nas Cordilheiras Andinas. Na época, Samuel com mais de sessenta anos realizou expedições de ascensão dos Picos Áustria e Condoriri na Bolívia. No Equador ascendeu Rumiñahhui, El Corazón, Rucu Pichinchas, Ilinizas, Chimborazo e Cotopaxi.
Com Sam subi o Vulcão Osorno no Chile e fiz o Trekking de Salkantay no Peru, a minha primeira e única montanha acima de quatro mil metros de altitude.
Jamais esqueci um único detalhe daquela nossa aventura em Salkantay. Lá vivi momentos maravilhosos ao lado de San e junto à natureza andina. Lá também passei por muitas dificuldades físicas e psicológicas. Conheci o medo de morrer numa montanha gelada, quando sofri com os sintomas do “mal agudo da montanha” devido escassez de oxigênio e esgotamento físico.
Samuel participou de muitas aventuras nas montanhas do Brasil e dos Andes. Mas, como ele mesmo respondia quando alguém lhe perguntava, foram apenas duas situações difíceis que teve que vencer.
A primeira foi quando estava escalando o “Garrafão” na Serra dos Órgãos. No momento em que se preparava para descer de rapel, Samuel sofreu uma queda de cerca de quinze metros de altura. Foi salvo porque a mochila que carregava amorteceu o impacto quando ele caiu de costa no patamar abaixo. Apesar de ter fraturado o pé esquerdo, com apoio do parceiro e ingerindo analgésico, ele sempre tinha no “necessaire box” alguns comprimidos de tylex, conseguiu retornar à base da montanha e ser levado ao hospital pelo companheiro de escalada.
A segunda dificuldade, que não foi um acidente na expressão correta do vocábulo, ocorreu no Equador quando ele e um amigo estavam ascendendo o Vulcão Chimborazo, um dos mais difíceis cumes de ser atingido nos Andes. No dia que chegariam ao topo da montanha, depois de quase onze horas de caminhada em um ambiente bastante inóspito, Sam, apesar do equipamento profissional que usava, teve um princípio de hipotermia em consequência do cansaço extremo e o congelamento dos dedos das mãos e dos pés. Contou-me ele que, sem conseguir dar um passo, caiu na montanha gelada e de lá não queria mais sair.
Percebendo a situação que Samuel se encontrava, o seu companheiro desistiu do cume e, pela corda que os unia, o arrastou montanha abaixo, por quase seis horas, até o abrigo mais próximo.
Conheci muitas pessoas persistentes. Pessoas que não desistem de seus objetivos que não admitem andar para trás. Mas Samuel, no meu modo de ver a vida, exagerou. Ele não tinha limites, a despeito de qualquer problema ele continuava em busca das metas planejadas.
Dez meses depois do Chimborazo ele voltou ao Equador e chegou ao cume do Vulcão Cotopaxi.
E na semana que completaria um ano do acidente na Serra dos Órgãos, Sam estava lá escalando novamente o “Garrafão”, a montanha que o fez conhecer o temor de “tocar no vazio”.
Para ele era mais fácil persistir e continuar do que renunciar uma meta.
“Jamais desista. Siga em frente, a dor e o desconforto são passageiros”.
Assim viveu o meu marido montanhista.
Eu e o Contista
- Dona Bia, a senhora está bem? O café está servido, o seu neto já chegou. - Eliane gritou-me novamente da cozinha, desta vez num tom enérgico de voz.
Sem nada responder, continuei sentada à cama. E tal como “Aila”, a protagonista do conto “Chegadas e Partidas” de Sam, fiquei admirando, pela fresta da janela, o azul do céu da linda manhã que surgia. Assim, deixei-me levar pelos pensamentos às recordações dos momentos vividos junto ao meu “marido contista”.
Sam, desde muito cedo, tornou-se um amante da literatura.
Não me recordo de um único período, dos quase oitenta anos em que vivemos lado a lado, no qual ele não estivesse lendo um romance ou um conto.
O livro fazia parte do seu cotidiano. Estivesse onde estivesse, o livro estava por perto. Quase sempre nas mãos, às vezes na pasta, na mochila, no banco do carro, na barraca de acampamento...
Em todas as casas e apartamentos em que moramos, sempre reservei um espaço para colocarmos algumas estantes de livros.
Com o advento da informática, Sam passou a catalogar suas obras. Ele chegou a controlar em banco de dados os livros de sua biblioteca. Além de classificá-los por nacionalidades dos autores, também os separava em prateleiras dos lidos e dos a serem lidos.
Sam não era um colecionador de livros, não era um bibliófilo, não era um comprador compulsivo. Acompanhava as críticas e os principais concursos literários no Brasil e no mundo. Então, ele só adquiria obras que tinha realmente interesse de ler. Por isso, o meu marido nunca aceitou a minha sugestão de relacionar por prioridade o seu acervo de livros a serem lidos. Pretendia ler todos.
Mesmo antes de morarmos em Moscou, Samuel já tinha uma paixão pelos autores russos. Para ele, Liev Tolstói, Dostoiévski e Nikolai Gogol estavam entre os melhores dos melhores romancistas que o mundo já viu.
Quando conversava com alguém sobre literatura, não deixava de citar o irlandês John Boyne nascido em 1971, o qual se referia como “o garoto do livro”. Samuel lia tudo que aquele autor escrevia.
Sempre ouvi dizer que “quem gosta de ler também gosta de escrever”. E Samuel não quebrou esse aforismo, deixou publicado alguns livros. Segundo ele, o verdadeiro legado que deixaria aos descendentes seriam seus textos.
Vez por outra, Pedrinho me pergunta: “Vó quer escutar a crítica que um leitor publicou na rede social após ler um dos livros do vovô Sam?”
E sem esperar qualquer manifestação minha, ele começa a ler. A última que leu dizia mais ou menos assim: “Último Livro, uma leitura muito agradável. O autor conta as histórias dando a impressão de estarmos reunidos ao redor de uma mesa ouvindo suas narrativas. Quanto mais fala, mais aguça nossa atenção. Cada conto consegue ser mais interessante que o outro. Tem um estilo muito claro, com frases elaboradas à altura de um mestre da língua. Uma pontuação perfeita que torna o diálogo mais vivo e emocionante. Parabéns pela obra”.
Ah! Como é bom manter viva as lembranças do meu marido contista.
Ah! Como era bom acordar todo dia ao lado de Sam, conversar sobre literatura, ouvir suas ideias. Com ele a vida tinha mais sentido, pois estávamos sempre a caminho de um objetivo...
Na literatura, Sam vivia no mundo dos romances, dos contos e do “ouvi dizer”.
Ouvi dizer que “não há como viver sem uma razão, sem um propósito”. Eu concordo.
Ouvi dizer que “nada vem do nada, para tudo há uma explicação”. Eu acredito.
Ouvi dizer que “o acaso é o responsável por menos de cinco por cento dos acontecimentos que vivemos”. Eu concordo...
... ouvi dizer que “existe um paraíso para os amantes da literatura”. Eu acredito
... ouvi dizer que “Sam continua lendo e escrevendo no céu”. Eu acredito.
... ouvi dizer que “Sam continua me amando”. Eu acredito.
... ouvi dizer que...
Eu e o Agricultor Rural
— Bom dia, Pedrinho! Já já estarei aí para o nosso café. — eu murmurei enquanto levantava da cama, não mais do que trinta ou quarenta segundos depois de ouvir o grito da Eliane me chamando pela terceira vez.
Ao virar-me em direção ao toalete do quarto, senti uma tontura. Vi a claridade de mais uma manhã refletindo no espelho. Apesar da beleza do alvorecer, o azul do céu não era tão azul como o que cobria o nosso sítio no Vale do Jaborandi. Fixei o olhar naquele reflexo e vi surgir a imagem da Pedra do Sofá...
Foi naquela pedra que conheci o meu marido agricultor.
Era um final de tarde, não lembro se de um domingo ou sábado de outubro, mas isso não importa. Estávamos retornando de um trekking na Cabeça do Dragão, uma montanha localizada no Parque Estadual de Três Picos, em Nova Friburgo.
Quando paramos na Pedra do Sofá para um descanso, enquanto eu desequipava a mochila para sentar, Sam, ainda em pé apreciando a paisagem, de repente disse: “Querida, que tal ficarmos aqui pra sempre?”
E sem esperar uma resposta continuou no seu devaneio: “Estou pensando em comprar um terreno para construirmos o nosso abrigo. Algo com espaço suficiente para um abrigo de montanha e uma lavoura. Vamos nos tornar agricultores rurais. O que você acha?”
Aquela imagem e a pergunta de Sam jamais desvaneceram das minhas memórias. Na época, eu e ele estávamos com mais de sessenta anos.
“Sam, você pirou ou está sofrendo do mal da montanha em baixa altitude? Você não acha que já temos muitos compromissos? Temos viagens marcadas para trilhas no Brasil e nos Andes. Esqueceu que temos dois filhos e netos? Como ficar aqui para sempre?” — eu respondi, olhando nos olhos dele que brilhava como os de uma criança quando ganha um presente.”
Terminamos o trekking, voltamos para casa e nada mais foi dito por ele ou por mim sobre aquela ideia de morarmos na Zona Rural de Nova Friburgo.
Mas, uns quinze ou vinte dias depois do nosso retorno de Três Picos, quando estávamos sentados na varando deste apartamento olhando o sol se pôr no mar da Barra da Tijuca, percebi que Sam estava impaciente. Não agia como costumeiramente fazia quando apreciava o ocaso. Era nítido que ele estava interessado em outra coisa, não estava nem aí para àquele fim de tarde.
No exato momento em que o limbo superior do sol afundou no longínquo oceano Atlântico, Samuel retirou da mochila, que ele havia colocado na cadeira ao lado, o seu caderno de anotações.
E por quase duas horas ele expôs o projeto, elaborado em três fases, com todas as providências e ações a serem executadas, inclusive como buscaria o aporte financeiro para custear as despesas do empreendimento de comprar um terreno na zona rural de Nova Friburgo e lá construir um sítio.
Não posso negar que, lá na Pedra do Sofá, ao ouvir a proposta de Sam, a ideia me chegou à mente como algo sem pé e sem cabeça. Um sonho impossível de ser transformado em meta. Entretanto, com as explicações do meu marido, comecei a gostar da possibilidade de morar em Três Picos.
Quando Samuel terminou a exposição, na qual conseguiu transformar o sonho em uma meta alcançável, eu não hesitei em responder que concordava com tudo que ele havia apresentado.
Eu e ele tínhamos plena consciência de que não seria fácil. Nós, sexagenários, partiríamos do zero para uma vida num sítio, na zona rural, que até então só existia nas nossas mentes e nos rascunhos de Sam.
E realmente foi bastante complicado. Apesar de seguirmos fielmente o planejado, surgiram muitas dificuldades. Muitas foram as noites em que Samuel e eu não conseguíamos dormir.
No entanto, antes de completar dois anos de convivência com o meu “quarto marido”, “O Recanto das Orquídeas”, o sítio da nossa família, já estava praticamente pronto com tudo que funciona até hoje.
O primeiro desafio na vida rural, ao qual eu me dediquei muito, foi preparar a lavoura, pois não tínhamos conhecimento técnico nem prático de agricultura. Não havia nos nossos antecessores um único agricultor se quer.
Enquanto Samuel cuidava da construção da pousada e dos outros espaços do sítio, eu fiquei a frente da lavoura.
Para minimizar a minha ignorância nos assuntos relacionados à semeadura, ao plantio e à colheita, busquei informações na internet e na literatura especializada sobre agricultura agroecológica.
Até hoje, bastante tempo depois, quando vejo uma foto do sítio, sinto saudades da vida simples que desfrutei ao lado de Sam durante a construção da casa. Moramos, por quase quinze meses, sem nenhum conforto, num chalé de apenas um cômodo com menos de quinze metros quadrados. Durante o dia era o escritório de trabalho, à noite nosso quarto. As nossas refeições eu preparava, numa panela elétrica do tipo “air fryer”, com produtos da lavoura e ovos do galinheiro que naquele início tinha umas poucas galinhas.
Foi no chalé que Samuel escreveu em seu caderno de anotações os detalhes de como seria e funcionaria cada espaço do sítio e da pousada. Habitualmente, quando terminava as especificações de um projeto, por menor que fosse, ele perguntava-me: “Amor, o que você acha de dar o nome de...?”. Quase sempre eu concordava. Para Sam, cada pedacinho do sítio tinha que ter uma identidade. Eu desenhava e escrevia os nomes em placas de madeiras e ele as afixava.
Assim que surgiu no sítio os nomes de “LPS-Legumes Primor da Serra”, “Estufa do Jaborandi”, “Escritório da Vovó, “Aquário Pedrinho”, “Ponte Gabi”, “Lago das Tilápias”: “Galinha Pintadinha”, “Chalé da Pesca”, “Chalé dos Patos”, “Chalé das Galinhas”, “Abrigo dos Quatro Patas”, “Balanço da Figueira”, “Pomar Lilica”, “Pedrão do Vovô”, “Milho do Mano”...
E na pousada “Quartos Pico Maior” e Pico Menor”, “Alojamento do Capacete”, “Recanto Lucinda”, “Recanto Café do Nem”, “Recanto Serioga”, “Recanto das Chegadas e Partidas”.
Lá, naquele pequeno chalé, vivendo intensamente cada dia ao lado de Samuel, pude constatar que para se usufruir momentos de felicidades basta estar de bem com a vida, pois nem sempre o conforto e a mordomia geram prazeres verdadeiros.
Morei na casa do sítio durante toda a eternidade do meu marido agricultor, porque, desde o primeiro dia em chegamos no Vale do Jaborandi, tínhamos consciência de que tudo que construíssemos ali só teria sentido na vida compartilhada entre nós dois.
— Vó, já estou sentado à mesa na varanda. Venha tomar o café e apreciar o azul do mar. O dia está lindo — ouvi ao longe o chamado carinhoso do meu neto. Mas não conseguindo forças para responder, nem para chegar ao toalete, deitei-me na cama...
Agora o azul do Jaborandi invadiu todo o quarto. Invadiu a minha mente...
Vejo a lavoura... o chalé...
Vejo o Sam no chalé escrevendo em seu caderno de anotações...
— Ah! Que bom, querido. Você voltou.
— Sam, agora ficaremos juntos “pra sempre” no azul do Jaborandi.
Sérgio Coutinho