“Bicho Geográfico”
15.04.2018
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Estava indo acampar na Ilhabela com amigos do colégio. Era o feriado de finados de 1971. Desceram a serra de fusca, em pista única e perigosa, o tempo estava um pouco nublado e chuviscava.
Chegaram à balsa e havia longa fila de espera para a travessia, iria demorar, mas para eles tudo era festa e brincadeira.
Atravessaram o canal apreciando a vista imponente da ilha com seu monte de cume alto dominando toda a paisagem. Bonito!
Saíram da balsa e foram procurar uma praia para instalar acampamento. A estrada era de terra batida e areia, levantando um pó razoável mesmo com o chuvisco que caía. Muitos carros estavam ali, a ilha parecia lotada mesmo com toda a dificuldade de acesso.
Seguiram em direção ao "centrinho da ilha", passando pela pracinha, pela igreja antiga e pararam na praia do "Sino" - tinha esse nome por ter uma enorme pedra que ao ser batida produzia sons parecidos com os de um sino.
Montaram a barraca e voltaram para o centro para jantar e beber. Divertirem-se!
E o fizeram de fato! Comeram e beberam, voltando bêbados para a "casa" de lona na praia.
Ele estava muito anestesiado pelo álcool e sonolento, mas ficou fora da barraca olhando o céu estrelado que se abria entre as nuvens, uma visão que poderia ser sonho ou realidade, tal era a beleza que o embriagava. Não sabia distinguir. Deitou-se na areia procurando os planetas e dormiu pesadamente, vindo a acordar com o sol alto e forte sobre o rosto. A ressaca braba trouxe-o de volta à realidade.
Voltaram do feriado dias depois e já durante o retorno sentiu um coçar forte no braço esquerdo, na parte superior, atrás do bíceps, que começou a lhe incomodar muito. Passou a viagem toda com a bendita da coceira, que se assemelhava ao ditado: "comer e coçar é só começar". E parecia que se alastrava pelo seu corpo todo.
Chegou à noite em casa e viu que o braço estava inchado, vermelho e coçando insuportavelmente. Não conseguiu dormir, passou álcool e pomada, mas nada de melhorar. Estava inchando cada vez mais e formando bolhas que expeliam um líquido amarelado. Uma "nojeira"!Na manhã seguinte sua mãe olhou o braço e ficou muito espantada.
- É cobreiro! - Disse a empregada que morava a muitos anos com eles e se criado na roça. Entendia desses assuntos! - É? Tem certeza? - Questionou a mãe.
- É sim, eu tive quando criança e tem que ir benzer que passa. Deve ter encostado o braço no rastro ou baba de algum sapo brabo - completou ela.
- E aonde vou achar "benzedeira?
- Tem uma senhora aqui perto, sei que ela benze e tira mau-olhado. Vou passar pra senhora onde ela mora, leva ele lá. Vai passar.Ele não acreditava no que ouvia, pois tinha certeza que nenhuma benzedura resolveria seu insuportável problema de coceira. Não seria a melhor solução!
- Mãe, melhor ir ao médico, "benzedeira" não vai resolver - protestou ele. Ela não o escutou. Não teve jeito, foram naquele mesmo dia até a benzedeira. Era uma "senhorinha" pequena, simpática, de voz baixa e arrastada, cabelinhos brancos como algodão. Muito querida! Ela olhou o braço cuidadosamente e confirmou o diagnóstico:
- Cobreiro! Tem que benzer todo dia que em uma semana passa! - indo buscar as folhagens para benzer.
- Uma semana? Que martírio! Não vai dar pra aguentar não! - pensou ele. Ela voltou com galhos de arruda e começou o ritual em pé, fechando os olhos, emitindo sons ininteligíveis, balançando o corpo para frente e para trás em uma espécie de transe, passando a arruda e irritando ainda mais as feridas! Em dado momento quase caiu sobre ele. A sessão terminada custou cinquenta cruzeiros! Foram por mais dois dias e nada de melhorar! O "braço-coxa", vermelho como pimentão, só piorava, coçando incessantemente a todo segundo, minuto e hora, deixando-o quase louco. Irritado!
Virou motivo de gozação na escola. Os colegas diziam que estava virando "caranguejo", com uma pata maior que a outra ou, que a mudança de sexo começava pelo braço - a coxa-braço -, e mais outras brincadeiras, pois não cabia nas mangas das camisas, tiveram que ser cortadas para serem vestidas. Estava ficando doido com a coceira, não aguentava mais a benzedura e pediu ao pai que o levasse ao médico.Foram ao dermatologista e esse ao olhar o braço, falou espantado:
- Incrível! Você tem uma colônia de bichos geográficos aí no braço! -Pegou uma máquina fotográfica e tirou fotografias do braço-coxa. Virou um -" medical case"- caso de medicina!
- Impressionante, nunca vi tantos! Onde esteve nesses últimos dias, foi à praia?
Ele confirmou.
- Ah, então foi isso, deve ter deitado em fezes de cachorro ou gato! Não sentiu o cheiro? Pelo tamanho da infestação a quantidade de dejetos deve ter sido grande!
Estivera bêbado igual "gambá" e não se lembrava de nada, mas não disse isso ao médico na presença do pai, pois poderia implicar com ele. Daria "merda" em todos os sentidos - pensou!O médico prescreveu Mintezol. Inesquecível porque as pastilhas tinham que ser mastigadas e davam um enjoo danado. Que situação!
O braço-coxa foi melhorando dia a dia, reduziu seu tamanho, os caminhos pela pele reduziram de número e a coceira praticamente sumiu. Que alívio!
O pai brincou com a mãe sobre a "benzedeira", dizendo que pelo dinheiro gasto, pelo menos o "mau-olhado" deva ter sido tirado! Ele esperava que sim, pois, pelo sofrimento que passara alguém deve mesmo ter-lhe jogado um "enorme mau-olhado!
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