A Televisão

Sem ruminante nem carroça a condizer, eram os três que se afadigavam a empurrar o carro de transporte manual, carregado até mais não, de esterco com que iriam semear as melancias.

As lérias soltas amiúde encurtavam o caminho, agora plano e fácil de empurrar. A descida, com um cheirinho de travão, também dava para uma graçola em que p’ra baixo todos os Santos ajudam, e para o pequeno se empoleirar, enquanto ouvia o pai a fazer planos que se as coisas corressem bem, a próxima compra seria uma televisão. Ela, normalmente dava-lhe para trás, ciente dos ganhos que mal davam para diferençar o domingo dos dias da semana. Mas vá-se lá saber porquê, nada disse.

Foi o pequeno que fez a pergunta:

- Ó pai, e mete electricidade na nossa casa?- Pergunta simples de quem invejava a lâmpada de vinte e cinco velas com que o Júlio, o filho do vizinho, fazia os deveres da escola.

A resposta responsável veio da mãe, já farta das bazófias do marido e do pedido do filho, de forma autoritária:

- O quê!? Mas tu queres tudo? Não te chega a televisão?

- Mas ó mãe!...

- Qual mãe qual carapuça! Empurra, empurra que agora é que são elas.

A subida era íngreme, fazendo o chefe de família esfalfar-se para não deixar que o carro regressasse ao ponto de partida. A mãe descalça empurrava com a mesma genica com que parira seis filhos e ainda se gabava de que a fábrica bem manuseada daria para mais umas quantas fornadas. Os dedos dos pés, qual âncoras, fincavam-se em cada irregularidade do terreno impulsionando a cabeça contra o taipal fazendo força.

Mais lesto na língua que em força, o garoto também empurrava, embora com a cabeça a matutar sobre a solução de estudar sem ser à luz da candeia. Mas a mãe parecia irredutível e agora não valia a pena voltar ao assunto. Mais acima talvez, quando a courela se deixasse ver e a pausa de uns minutos para recuperar o fôlego permitisse falar.

Finalmente vencido o caminho, o primeiro olhar é na contemplação dos viços e na zona da descarga definida. Tempo para os pais desencantarem do meio do estrume uma garrafita com que empurravam o pó da ladeira. À oferta dos pais, uma careta. Aquilo não lhe matava a sede, mas ali a cem passos a poça da rega tinha sempre água fresquinha, era só empurrar os “alfaiates” que ali “patinavam” e engolir até lhe faltar o ar. As rãs invejosas saltavam para as bordas sobressaltadas e até perdiam o “pio”, mas logo retomavam o coaxar, indiferentes à presença do maltês. Que boa era aquela água!

- Sai daí meu estupor. – Grita-lhe a mãe ao ver o seu rebento de cabeça dentro de água a fazer bolhas com o ar que expelia. – Olha para isso, já tens o peito todo encharcado.

O estrume descarregado aos montículos na área a semear, e um monte de erva ceifada num instante a servir de “cama” para o gaiato vir à boleia. Deitado, deliciava-se com o cheiro fresco emanado, indiferente à conversa dos pais. Os solavancos fizeram-no adormecer. Sonhava com a compra de uma televisão.

O pai cumprira, havia televisão lá em casa, não mais teria que inventar histórias para ver o Rin-Tin-Tin no salão paroquial, nem o Bonanza, ou o Robin dos Bosques na associação, de quem o pai fora suspenso após uma bofetada dada a um outro sócio.

Nunca soubera a razão do desentendimento, mas o pai tivera razão. Tinha sempre, mesmo quando não tinha, mas quem se amolara fora ele que para entrar tinha que pedinchar ou esconder-se detrás do xaile da vizinha. O pai era pobre mas orgulhoso, recusando-se a comparecer perante a comissão de disciplina para dar explicações sobre o bofetão, dizendo que quem eram aqueles três badamecos, armados em juízes, para lhe darem lições de conduta. E, assim como assim, também não pagava as cotas.

Lá estava ela empoleirada numa prateleira que a mãe forrara com um bocado de chita logo por cima da mesa de jantar, ao lado do retrato dos avós. Era linda, igualzinha à do clube e à do senhor do Terreiro. Deleitado contemplava-a. C’um caneco, aquilo dava requinte, já ninguém o podia apontar como um qualquer. Era certo que o seu melhor calçado se resumia a um par de tamancos. Mas quem da escola se podia gabar de ter televisão em casa?

Correu a ligá-la, mas nem sinal de si. Continuava escura sem qualquer vontade de mostrar as imagens que tanto o fascinavam. Estava na hora do Bonanza e aquela coisa mais muda que uma bota. Desesperado correu para associação, talvez o deixassem entrar…

- Então isso é que foi dormir! Anda cá que tens uma surpresa. - Convida a mãe sorrindo.

Na sala não tinha a televisão como no sonho, mas uma lâmpada que a mãe se prontificou a ligar, deixando o pequeno de olhos esbugalhados e um sorriso de orelha a orelha. Agora sonhava acordado; quem sabe se um dia não teria uma televisão a sério, agora que já tinha electricidade.

Lorde
Enviado por Lorde em 05/11/2020
Reeditado em 05/11/2020
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