UM JANTAR COM FAROFA
Foi agora pouco. Uns vinte ou vinte e cinco minutos atrás.
Saí de um banho demorado e perdi o horário do culto. Subi o único lance de escadas que tem entre o andar de baixo e o de cima, vesti uma roupa de casa e fiquei no quarto. Minha mãe estava no quintal estendendo a roupa que acabara de tirar da máquina. O celular estava com a bateria pela metade. Faltava carregar mais um pouco, mas já queria mexer. Minha mãe chamou:
- Filho! Desce aqui.
- Pra quê, mãe?
- Vem ver o que eu vou fritar, pra você fazer amanhã.
Moramos eu e ela apenas. Meus pais são separados, mas ele ainda frequenta minha casa. Trabalha perto, toma café e almoça. Tudo aqui. Ajuda com um dinheirinho. Eu suporto. Teria que fazer almoço amanhã e então precisava saber o que a mãe estava aprontando para o jantar, pois quando era assim, provavelmente a quantidade não seria o bastante para durar dois dias.
Deixei o celular carregar mais um pouco. Arrastei-me até a cozinha. Um cheiro gostoso de fritura borbulhava na frigideira.
- Estou fazendo filé de frango empanado, filho.
- Delícia. E por que eu tenho que ver?
- Amanhã vai ter isso de mistura pra você e seu pai.
Ela empanava tudo em farinha de trigo e fubá. Nunca tive dotes culinários para nada. Graças a Deus fui presenteado com a melhor cozinheira do mundo: minha mãe.
- Vou jantar.
Coloquei meu prato.
- Põe o da mãe também.
Pus a comida dela. Pouquinho. Come bem pouco. Havia na mesa mais três filés prontos postos num prato.
- Deixei esses três para seu irmão quando chegar caso ele queira comer.
- Ih, mãe. Nem sei. Eu acho que ele vai querer jantar em casa. Se duvidar lá tem comida pronta.
Meu irmão mora com a esposa e uma linda filhinha perto de casa. A gula insistia em comer mais do que devia, contudo resisti e peguei os outros pedaços que minha mãe tinha separado para nós na frigideira.
Sentamos.
Ela puxou conversa. Falava sobre uns vídeos que assistira onde japoneses ou chineses (não é tudo igual?) cozinhavam coisas esquisitas. Mãe ama falar sobre coisas que tem na cozinha.
- Tive uma ideia, mãe. Empresta o celular da senhora!
Entrei no Youtube e deixei passando um vídeo onde um cara comia seis quilos de feijoada. Enquanto isso dei a primeira garfada:
- Ui. Tá quente. Vou pegar a farofa. Onde está?
- Filho, isso não é hora de comer farinha.
- Calma, mãezinha! É só um pouquinho. Também, tem quase nada no pote. – Após procurar e não achar, falei - Onde a senhora guardou?
Ela apontou para a geladeira. Peguei. Estava leve. Tinha pouco mesmo.
Um pote laranja com tampa. Derramei metade no meu prato.
- Isso é hora de comer isso? Vai ficar entupido.
- Vou não, mãe. Relaxa. Vê o vídeo.
Mastiguei a comida. Se o cheiro estava bom, o gosto estava melhor ainda. A sensação de carne empanada macia se misturando com saliva e o tempero da farofa pronta era uma delícia. O celular continuava a passar o vídeo:
- Menino, ele vai comer essa feijoada inteira?
- Tenso, né mãe? Vou pôr mais um pouco de farofa.
- Cuidado com esse pote. Foi minha irmã que deu.
Temi quando ela disse “irmã”. Não imaginei que ela fosse falar dela. Não àquela hora. Eu sempre evitava aquele assunto, mesmo sabendo que ele se repetiria como engrenagens de um relógio.
Disfarcei:
- Ah. É da tia Dolores?
- Não.
Ela falou com olhar baixo.
- Ah. Entendi.
Falei sem graça. Era da minha outra tia. A que havia falecido. Fazia alguns meses. Sua morte fora um baque para toda a família, ainda mais para ela que era a irmã mais nova de doze filhos. Durante o jantar aquele assunto nasceu.
- Ela me deu esse pote quando ainda trabalhava lá perto. Tinha goiabada dentro.
Coloquei o restante da farofa no meu prato. Bem devagar, como se não fosse apenas a comida quente que eu teria de digerir.
- Ela gostava tanto de goiabada...
Continuei comendo em silêncio. Já ouvi um bom número de pessoas, próximas ou não, desabafando sobre qualquer coisa comigo. Relatando suas frustrações e pesares. Em casa não havia desabafo. Havia repetições. Água amarga em pedra dura... Tanto bate. E batia sempre.
Sempre é mais difícil ouvir os de casa. Não tem o glamour da utilidade nem o olhar de gratidão que alguém de fora lançaria sobre mim. Só teria a dor, sem cura, e mais nada.
Ela prosseguiu. Não prestava mais atenção ao vídeo:
- A gente costumava conversar essa hora. Ela me mandava mensagem no celular. Um dia ela estava tão triste. Havia comido uma costela que não lhe fez bem. Passou mal naquela noite e teve um infarto. Foi levada às pressas para o hospital.
Dei outra garfada. A farofa com o filé de frango crocante estava realmente apetitoso. O assunto não.
- Puxa, mãe... complicado...
Ela não iria parar. Eu não iria detê-la. Nem poderia:
- A médica, amiga dela (ela era amiga de muita gente), disse que ela escapou por pouco e se tivesse mais um infarto daqueles, não resistiria.
Seus olhos ficaram molhados e começaram a avermelhar. Fez-se um silêncio. Minha tia morreu de um infarto fulminante numa madrugada.
- Eu estava em casa quando recebi a notícia da noite que ela morreu.
Não queria que minha mãe falasse daquilo. Daquilo não. Era pesado demais. Mas era tarde.
- O marido bêbado não acordou. O celular de sua tia estava no chão quando entraram no quarto. Havia várias ligações que ela fez de madrugada...
Continuei mastigando. Coloquei três garfadas na boca de uma vez para ver se minha mãe atentaria para a falta de educação e mudaria o assunto. Ela não mudou e permaneceu falando com o rosto levemente abaixado e o olhar fixo no nada:
- Ela tentou pedir ajuda. Ninguém atendeu. Logo ela que ajudou tanta gente...
(Mãe, por favor, para!) pensei sozinho.
- Ela não teve ninguém ali pra socorrê-la. Morreu sem ver ninguém.
Meu coração chacoalhou. Engoli o que estava na boca como uma verdade. Seco e pedregoso. Respirei fundo:
- Ela viu um anjo, mãe. Esse foi o último socorro dela naquela hora.
Falei mais para me aliviar do que para alivia-la. O prato de minha mãe já estava vazio. Não prestei atenção nela comendo. Nem pareceu que comeu.
Alguns segundos de silêncio. Ela soluçou. Uma lágrima que fugiu do olhar da minha mãe rapidamente caiu no forro da mesa:
- Lembro que um dia ela chegou chorando onde eu trabalhava. Pedi para ela sentar e conversamos. Disse: “Minha irmã, fique em paz. A última palavra é de Deus!”. Daí ela me abraçou forte e foi embora sorrindo.
O vídeo ainda estava passando no celular. Meu prato estava quase no fim. Estranhamente a comida não esfriou. Eu coloquei uma boa quantidade, porém, pelo tempo, já deveria ter esfriado. Como um cadáver. Não. Permanecia quente. Quente como a vida.
Ainda tinha farofa em meu prato.
- Por isso, filho, eu não me importo mais se seu pai ainda come aqui. A vida passa tão rápido. Tudo fica pra trás. Tudo é bobagem.
Apenas concordei olhando para ela e depois voltei a me concentrar em terminar a comida. Quieto. A voz dela era mais baixa que o som do celular, todavia, nem me lembrava mais que um vídeo tocava ao nosso lado enquanto ela falava.
O assunto da tia falecida sobrevivia naquela mesa entre os lábios de minha mãe:
- Ela costumava ouvir aquela música do Roberto Carlos.
A canção não era bem do Roberto Carlos e sim do Tim Maia. A famosa “Gostava Tanto De Você”. Minha mãe certamente associou com a “Como É Grande O Meu Amor Por Você”.
Por um momento ela ficou em silêncio. Em já estava sem palavras há um bom tempo. Voltou num tom que me machucava muito:
- É difícil. É dolorido...
As frases que mais me doíam eram aquelas só com duas palavras.
- Ela morreu... Saudade fica... Nunca esqueci... Minha irmãzinha...
Silêncio. A comida nem tinha mais gosto a essa altura.
De repente disse:
- Gente, o cara comeu a feijoada toda. Misericórdia.
Enxugou as lágrimas, puxou o prato levantou da mesa.
Terminei meu prato.
- Agora vou escovar os dentes e dormir que amanhã não é dia de folga pra ninguém, não.
E saiu como se nada tivesse acontecido. O assunto acabou e foi enterrado.
Ao me levantar, fui até a pia e deixei meu prato com os talheres. E lá estava o pote laranja, vazio e com alguns grãozinhos de farofa pronta Yoki. Fiquei olhando para ele. Imaginando-o com goiabada dentro e depois sendo lavado, guardado e reutilizado para colocar a farofa. Pensei em lavá-lo. Não lavei.
Voltei para o quarto. Tirei o celular do carregador. Já estava quente. A bateria estava cheia. Recebera uma grande quantidade de carga.
Eu também.
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***ORIGEM DA PALAVRA "FAROFA":
A palavra "farofa" vem de "falofa", variação de kuvala ofa, que significa "parir morto" ou "dar à luz morto" em quimbundo (língua africana falada no noroeste angolano).
***Fonte: Google