Semente

Pela primeira vez após anos, a única figura que eu vejo no canto da sala é a minha filha brincando de bonecas. Fora do clichê que envolve ver viva minha semente que está crescendo neste mundo ou o pequeno incômodo que sua bagunça me causava – logo eu que sou bagunça por natureza – o que me chamara a atenção e me fez tirar o foco do programa de qualidade duvidosa que passava na televisão foram as suas palavras. Nada de especial. Nada memorável. Apenas ideias de criança, complexas demais para um adulto entender, mas que carregavam verdade em seu cerne. Acho que isso me encantava. A imaginação da minha filha era real e isso contrastava perfeitamente com a minha realidade falsa. E dentro de um transe filosófico, minha filha fisgou minha atenção e me deu um soco no estômago: jurara amor eterno às bonecas. Céus, é nessas horas que os pais interveem? Como eu poderia explicar para a pessoa que eu mais quero proteger da dura realidade da vida que nada é eterno? Ou como fazer isso quando nem eu mesmo aceitei tal fato completamente? Encaro a planta no outro canto da parede descascada como quem espera uma resposta, e, dessa vez, ela vem como um soco transgressor que floresce de dentro para fora, junto com meu sangue fresco primaveril: talvez isso não seja sobre minha filha. Talvez isso seja sobre a dificuldade que eu sempre tive em permanecer e sobre como isso ecoou em todas as vezes que eu tive que dizer adeus ou todas as vezes em que eu parti sem dizer nada, porém sentindo tudo. Talvez seja sobre o que restou da criança que eu era, que eu sou, que eu serei mais ainda após envelhecer e me desprender de tantas amarras imaginárias. Talvez seja sobre minha semente que está crescendo neste mundo. E talvez seja sobre o pequeno incômodo que sua bagunça me causava – logo eu que sou bagunça por natureza.

Rodrigo dos Reis
Enviado por Rodrigo dos Reis em 04/11/2020
Código do texto: T7104217
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