O velho e o rio

O velho e o rio, cinquenta e sete anos depois se reencontram. Olegário saiu de Januária aos vinte e seis anos e veio morar em belo horizonte. A história de todo migrante. A cidadezinha não comportava mais os sonhos e a energia de um jovem e decidiu vir para a cidade grande. 

Hoje, aos oitenta e três anos reencontra o seu companheiro de infância: O rio São Francisco. O leitor que me perdoe tantas datas, mas elas são importantes nesta história. Pensem na imaginação e nas expectativas de cinquenta e sete anos. O passado é como o formatamos. Sempre fazemos uma seleção das coisas que queremos arquivar e cinquenta e sete  anos é um bom tempo para se fantasiar a respeito da infância e da juventude. E estava diante dos meus olhos a cena: Meu pai, idoso, retornando a sua terra depois deste tempo todo., parado na ponte olhando para o Rio São Francisco imóvel e mudo. 

Toda a minha vida ouvi histórias sobre este rio. Meu pai gostava de dizer que era “barranqueiro”, nascido e criado nos barrancos  do Rio São Francisco e lá aprendeu, com o rio,  a nadar e pescar  A imagem que mais lembro e que mais era falada é que o rio era tão grande que não se conseguia ver a outra margem e que era navegável! Muitos barcos e vapores, como meu pai dizia, subiam e desciam o rio. Fazendo uma festa no porto de Januária com o embarque e desembarque de pessoas e coisas. 

Me perco novamente ao admirar a cena. O velho e o rio! Tento imaginar o que meu pai está pensando neste momento. Lembranças da infância, brincadeiras, lições que o rio lhe ensinou. Posso ver a outra margem do Rio. É bem próxima. O rio da infância do meu pai era enorme ou os olhos da criança o faziam grande, para ele era um mundo de água. Pais, primos, irmãos, avós, tios, todos viviam em volta e em função deste rio. A maioria já não existe, mas o velho se perde em lembranças ao olhar estas águas.

Na cidade, tudo também mudou. Na volta que demos no centro às vezes ele apontava um local e dizia:-“Aqui era a casa de meu tio Sebastião, ele tinha uma fazenda em Cochos e os filhos moravam aqui para estudar e vender as coisas da fazenda”.  – “Aqui era a vendinha de D, Mariquinha. Ficou viúva e ganhava dinheiro vendendo fumo e cachaça”. – “O porto também’, diz ele, -“era muito grande e tinha um movimento de turista, mercadorias chegando e saindo, As crianças maiores sempre ganhavam alguns trocados carregando malas e mercadorias.”. Hoje o porto é um cais e o rio passa bem longe do píer, indicando que suas águas recuaram. 

Pediu para ir ao cemitério ver a sepultura dos seus pais. O cemitério não existe mais, o mato esconde as sepulturas e algumas ainda têm inscrições. Ali, meu pai achou seus amigos. Dizia feliz ao reconhecer algum nome:- “Olha a minha prima Ernestina!” e “--O meu Tio João”, - “A filha do meu padrinho José”. E ria, feliz. Finalmente achou sua identidade nesta terra que não o reconhece mais. Jantamos no porto que não é mais o seu porto. 

Na volta para belo Horizonte veio calado. Penso que ele deixou hoje naquela cidade desconhecida o seu passado. Não tem mais um lugar para voltar. Não se reconhece na sua terra. O tempo muda tudo, as pessoas crescem, mudam para outros lugares, trabalham, casam, vendem a terra, se movimentam e voltar depois de tanto tempo deixa a certeza de que tudo se foi, não é mais. 

Dias depois ele me disse:

 _ “O rio mudou, mudou as suas águas, as margens, as plantas.”. Sem tristeza, mais como uma constatação e um assentimento das mudanças que o tempo traz. Penso sem dizer nada:

 -” O lugar que meu pai sempre falou e sempre queria levar todos nós para conhecer, morava na sua cabeça.”

Marcia Cris Almeida