Apenas um triste e solitário escriba
"se eu sofro assim diante dessa
máquina de escrever
pense em como eu me sentiria
entre os colhedores
de alface em Salinas?"
Charles Bukowski
Estou desempregado de novo. Gosto de ler e estou a fim de escrever um livro. Vivo do seguro-desemprego. Muitas vezes saio às ruas à procura de inspiração, no entanto tudo o que vejo é o caos. Fico nos parques, nos ônibus, nos bares e até em velórios para ouvir as pessoas, mas elas quase não se falam mais. Elas estão no limite, em todos os sentidos. Gritam demais ou silenciam ao extremo e, ao redor delas, há uma aura de desespero
Volto para o meu quarto de pensão e me sinto uma barata como o Gregor Samsa, do livro A metamorfose de Franz Kafka. A diferença entre nós dois é que ele estava incomodado em se sentir daquele jeito. Eu já nem ligo. Tanto é assim que rapidamente caio no sono.
Dormi ininterruptamente durante quatro horas. Acordei com barulhos no quarto ao lado. Algo como uma discussão familiar onde as palavras e os palavrões se chocam no ar e vão derrubar os quadros nas paredes ou as panelas no fogão.
Levantei-me a contragosto, ainda com sono, enfiei dois algodões no ouvido e fui ao banheiro escovar os dentes. Olhei no espelho e vi uma cara amassada e triste. Pensei que a cara amassada logo sumiria assim que os exercícios de olhar, respirar, engolir, fumar, cuspir e, ocasionalmente, sorrir entrassem em ação. Mas e a tristeza, para onde iria? Ela eu não sei.
Eu calcei os sapatos enquanto ouvia o casal no quarto ao lado discutindo. Essa sinfonia deles, às vezes, durava horas. Por isso saio. Não gosto de música clássica, nem de brega. O casal, meu vizinho, era uma mistura de Pavarotti com Reginaldo Rossi. Seus gritos arranhavam minha paciência.
Abri a porta e um grito de “seu filho da puta” atravessou o ar saindo pela porta do vizinho. Continuei caminhando e ouvindo “pilantra”, “safada” e “vagabundo” espocando às minhas costas como tiros de escopeta.
Assim que cheguei ao fim do corredor ainda ouvi um “vai tomá no cu” bem distante, com a cavernosa voz de homem que reverberou pelo pátio, bateu no muro e fez com que algumas portas dos outros quartos se abrissem e cabeças curiosas aparecessem. Saí deixando aquele sarau palavrônico para trás.
Andei rápido e reto e logo cheguei ao bar de um recém-amigo.
Entrei de imediato e me dirigi ao balcão. Estava quase vazio àquela hora. O proprietário se movia atrás do balcão, acertando os últimos e pequenos detalhes para a noite, como um beija-flor acertando pequenas bicadas numa rosa. Ele tira e punha os objetos nos seus devidos lugares. Vê-lo ali trabalhando era o mesmo que sentir coragem.
Pedi uma cerveja e uma dose e ele, sem me olhar, foi até à geladeira e retirou de lá as duas garrafas: uma de pinga, de onde serviu a dose, e a outra de uma cerveja aguada bebível apenas porque era a única que tinha naquele fim de linha. Virei de uma só vez a cachaça, grudei a garrafa de cerveja pelo pescoço e me servi no mesmo copo.
Ele, finalmente, me olhou se aproximando. Enquanto passava o pano no balcão, falou meio de lado:
-Tá conseguindo escrever?
-Não, eu disse.
-Já falei. Se precisar de um lugar tranquilo pra escrever...
-Só preciso de talento e dedicação.
-Mas, num muquifo como aquele não tem...
-O muquifo sou eu, eu disse.
Engoli a cerveja em cinco minutos, depois paguei ao meu amigo.
Levantei-me e saí vagarosamente. Senti nas costas seus olhos desconfiados. Enfiei as mãos nos bolsos e me virei tentando capturar o seu olhar reprovador, mas ele já estava falando ao celular, tentando alugar seus quartos de pensão.
Me resignei a sair ligeiro. Foi quando vi no canto do balcão um ratinho farejando sutilmente e tentando alcançar alguns farelos de pão. Saí sem mais.
Na rua, sobre um muro, um gato magro cobiçava um casal de passarinhos que se coçava nos fios do poste. Passei silenciosamente, mal tocando a terra, com meus passos longos. Soergui a cabeça e segui em frente.
Fui pensando em imitar a natureza: matar a fome, crescer como uma árvore, cair como um raio, esparramar-se como o mar, soprar como um vento, girar como a terra e, por fim e mais importante, criar, produzir, reproduzir.
Esse negócio de talento, pensei enquanto caminhava, não é para mim. E assim eufórico cheguei ao quarto, peguei o notebook e comecei a tocar suas teclas como quem toca um órgão sexual.