“Pão da Madrugada”
27.03.2018
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Soube ele que o tio viria naquele mês para tratar da saúde na capital. Era o irmão mais velho de seu pai, muito querido, mas muito esquisito. Morava no interior do estado.
Preparava-se para ter que enfrentar de novo algumas noites mal dormidas. Ele ficava no sofá ao lado da sua cama em seu quarto que era o de hóspedes da casa. Falou para a mãe:
"- Ele vem agora na semana que vem, né? É muito esquisito o tio com aquela mania de comer pão de madrugada na cama. Me acorda!"
"- Pois é, temos que ajudar, ele está cuidando de problema sério de saúde e vem se tratar aqui. Mas não confirmou ainda, deve ligar esta semana."
Dias depois atende ligação telefônica:
"- Oi tudo bem com você, é seu tio, como vai?"
"- Tudo bem tio?" Ficou mudo alguns segundos aguardando o que diria, quem sabe não viria.
"- Semana que vem estarei aí avise seu pai. Tchau."
"- Tá tio, aviso, tchau!"
Chegou o dia. Veio para a sua casa no começo da noite para jantar e dormir, pois seu tratamento seria bem cedo no dia seguinte. Jantaram, conversaram seu pai, sua mãe, sua irmã e ele sobre como estava a sua família, suas filhas, "as meninas"- as primas que cuidavam dele, pois era viúvo, enfim, assuntos triviais após o jantar.
"Só duas noites e ele vai embora"- pensava, ou se consolava, pois ele retornaria para sua cidade no dia seguinte ao do exame, pela manhã, de ônibus. Não seria tão ruim assim!
Subiram ele e o tio para o seu quarto, ele conformado, para assistirem tevê - era também o da televisão da casa. Trazia no bolso do paletó seu lanche da noite - seu pão da madrugada - que pegava "escondido" na mesa depois do jantar, mas não tão despercebido, pois todos sabiam dessa sua mania. Sua mãe deixava o pão na mesa de propósito para ele levar para a cama. Ela arrumou o sofá colocando a roupa de cama para ele dormir e deu-lhe uma toalha de banho. Ficaram os dois assistindo por um tempo a tevê até vir o sono. Desligou o aparelho e apagou a luz.
Começaria o martírio de acordar com o "crac-crac" surdo e baixo de suas mordidas no pão no silêncio da noite! Seu tio começou a puxar conversa, saber como estava indo na escola, o futebol que gostava de jogar. Era tranquilo, tinha voz mansa, baixa e a menos desta sua peculiaridade e esquisitice de comer pão de madrugada, uma pessoa normal, pensou. Não resistiu e lhe perguntou:
"- Tio, por que traz pão no bolso do paletó e come de noite aqui no quarto?"
O tio ficou espantado, parecendo que não soubessem que fazia isso.
"- Como?"
"- O seu pão que come de madrugada?"
"- Ah, sim... Eu como ele de madrugada por que me dá fome e para não ter que incomodar a casa, ligar a luz, fazer barulho; por isso trago o pão, mas te incomoda?"
"- Faz assim na sua casa também?"
"- Sim faço, lá tem as meninas e também não quero acordá-las."
"- Mas por que não come mais no jantar e passa a noite sem ter que comer?"
"- Tenho medo de morrer de fome quando acordo no meio da noite sem nada para comer. Fico aflito!"
Não entendeu nada, era muita esquisitice mesmo desse seu tio e virou de lado adormecendo.
Acordou então ouvindo o rasgar do pão e o morder e mastigar do seu tio com o seu "crac- crac" peculiar na madrugada de silêncio total.
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