Estado de consciência

-Ai, que saco! Fazer nada é um saco! Bem que eu podia ir pra academia. Ah não, pra academia ainda não pode, é pandemia, sua louca! Vou ver minha vó, não pode, mas eu vou. Tenho máscara e álcool em gel.

Vovó sentada na varanda fazendo nada. Chega eu pra atormentar a bichinha.

- Oi vó, bença.

- Deus te abençoe, minha filha.

- Vó tô querendo fazer uma coisa diferente, mas não sei o quê.

- Você não cansa, menina. Olha o celular de minuto em minuto, fica na frente do computador 24 horas, participa de reunião, assisti live, lê um monte de coisas, recebe um monte de mensagens do chefe, do porteiro, da copeira, do jardineiro. Você parece uma máquina. Hoje é sábado. Apenas descanse.

- Descansar? Como assim, isso pode? Isso vai contra os meus princípios. O que dirão? Que sou uma desocupada?

- Não, minha filha, não se importe com o que dirão. Só descanse.

Fiquei ali na escada da varanda por alguns minutos, minha vó num sossego na rede, respirando ar fresco. E eu ali aflita por não estar fazendo nada. Volto pra casa e vejo como sou paranoica com organização do tempo, há post-its na maçaneta, na porta da geladeira, dentro da geladeira, na cabeceira da cama, no guarda-roupa, no espelho do banheiro, no vidro do fogão, nos azulejos da cozinha e ainda cartazes gigantes escritos com tinta neon no teto do quarto. Meu Deus! Eu sou louca. Com certeza eu sou louca. Preciso de ajuda.

Comecei a me questionar: qual foi a última vez que sai de férias? Acho que nunca. Eu só trabalho, trabalho, trabalho. Não preciso ir lugar nenhum. Talvez a pergunta seja: qual foi a última vez que fiz algo que realmente me deixasse feliz? Não tenho resposta. Então, resolvi juntar toda aquela poluição visual, coloquei no lixo, desliguei meus três celulares, desliguei o computador, o notebook e o tablet e fui para a sacada. Eu não pensei em pular. Por isso, talvez eu não seja louca. Resolvi ficar ali por um tempo e ver o que as pessoas faziam. Muitos estavam como eu na sacada. Moro numa região que não se desliga. Mas na quarentena tudo ficou tão quieto, antes havia carros indo e vindo, bares, lanchonetes abertos até altas horas, pessoas gritando, sorrindo, correndo, se divertindo e eu ali presa no meu apartamento, nem me dei conta desse mundo turbulento que eu vivia. Fui para o espelho e vi olheiras, cansaço em pessoa. Deitei no sofá e vi lá no chão da varanda minhas plantinhas ou que ainda tinha sobrado delas. Tive a sensação de ser como aquelas plantas murchas, estressadas pela exposição ao sol, maltratadas pela falta de água e poda. Tentei salvá-las, mas já não se podia fazer nada. O ciclo delas acabou, claro que em partes, ou totalmente, por minha culpa. Eu me esqueci de cuidar delas e também havia me esquecido de cuidar de mim. Eu continuava sem saber o que fazer.

Pensei em pegar meu livro favorito e ler um pouco, mas me contive e não sei porque fui até a despensa, peguei uma escada e acabei vendo uma caixa na última prateleira da estante.

Aquela era a minha caixa para o sucesso, eu a confeccionei na adolescência. Tinha aquele livro, aquele maldito livro “O sucesso está logo ali, siga”. Eu deveria ir atrás do escritor, mas acho que eu já fiz isso há uns oito anos, fui parabeniza-lo porque meu sucesso profissional foi graças ao livro. O escritor já estava senil, nem me disse obrigada. Eu havia preparado um discurso e ele só veio com aquela conversa de que ele não era responsável pelo sucesso de ninguém, e que a essa altura a única coisa que lhe dava satisfação era dormir. Que velho idiota! Depois de toda a fama, ele é um ingrato! É uma farsa! Filosofia barata!

Agora estou aqui me sentindo a pessoa menos realizada do mundo. Dentro da caixa tinham coisas tão especiais, chorei muito e também joguei aquela caixa no lixo. Subi de novo na escada para dar fim em outras caixas e eis que eu caio, não sei como, mas cai. Acordei nem sei quantas horas depois no hospital, os vizinhos escutaram o barulho, arrombaram a porta e me viram caída, chamaram uma ambulância. Felizmente, não sofri nenhum traumatismo, não quebrei nenhum osso. Perguntei quantas horas fiquei inconsciente e me disseram que foram três dias e foi assim que tive o meu estado de consciência. Me dei conta de que tenho uma vida e que devo dar graças a ela, devo honra-la. Sou a mesma pessoa, porém o que quero conquistar é a felicidade, não a felicidade plena porque dizem que ela não existe, na imensidão talvez algum dia eu a aviste e mesmo ali de longe eu a sinta.

*“O sucesso está logo ali, siga”, é um livro imaginário, se existe, nunca li. Só para constar.

Alguemqueescreve
Enviado por Alguemqueescreve em 28/10/2020
Reeditado em 28/10/2020
Código do texto: T7098516
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