302 - O Jogo
O ar estava pesado e um cheiro forte referenciava fumo, uísque, cinza e dizia que havia frio bastante para que a reunião tivesse sido à porta fechada, com o consequente ar viciado para cá dos reposteiros pesados. Três copos na mesa, um prato de porcelana onde havia pontas de cigarros, alguns marcados de batom. O baralho era novo . Quando soube regressou de imediato para o ver desfigurado, a lutar pela vida, ainda em coma. Jogador inveterado, mulherengo, inconsequente e perversamente mentiroso, de há muito tinha sido excluído da sua vida. Nunca se divorciaram e por isso estava ali para tratar das coisas que exigiam a sua assinatura, a sua decisão, o seu registo. Afonso tão cedo não sairia do coma, a clínica era cara e as contas estavam no vermelho. Quando bateram à porta e ela viu a mulher ainda jovem assustar-se com a sua presença, inferiu que ela esperava outra pessoa para a atender. – O Afonso está? É que na noite do jogo deixei a carteira com os documentos aqui. Estava tonta e nervosa, perdi todo o dinheiro que trazia e nem me recordo de como cheguei a casa. É a secretária dele? Mulher? A mim disse-me que era viúvo. Ainda bem que nenhuma importância tem na minha vida. Posso entrar para procurar a carteira? E antes que ela a impedisse, rumou para o quarto de casal e, depois, para a copa. – Achei, disse eufórica e saiu intempestiva sem se despedir. Ainda não estava refeita da surpresa e outro toque forte a avisara que havia quem estivesse a pedir urgência no atendimento. – Desculpe-me se incomodo mas deixei cá uma caneta de estimação que o Afonso disse estar sobre a cómoda do quarto. Falei com ele há instantes. Está em reunião. A chave ficava sempre escondida no vaso da entrada mas, na verdade, agora, não está. Posso entrar? - Não vale a pena. Depositei já na nossa conta o cheque que lhe deu para pagamento do que perdeu ao jogo.